STF e a competência da Justiça Comum para processar e julgar as lides envolvendo relação jurídica de representantes comerciais
Por Elis Marina Madureira e Clarissa Mello da Mata
A Justiça do Trabalho detém competência material, conferida pela Emenda Constitucional n.º 45 /2004, para processar e julgar demandas oriundas da relação de trabalho e de emprego, sendo que, ordinariamente vinha se reconhecendo que essa competência alcançava as ações provenientes de lide envolvendo representante comercial.
No entanto, ao apreciar o Tema 550 da Tabela de Repercussão Geral, nos autos do Recurso Extraordinário nº 606.003, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou tese no sentido de que: “Preenchidos os requisitos dispostos na Lei 4.886/65, compete à Justiça Comum o julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que não há relação de trabalho entre as partes”.
A época, muito se discutiu sobre os fundamentos do acórdão que deixava claro que a Justiça do Trabalho permanecia competente para julgar demandas em que seja postulado o reconhecimento de vínculo de emprego, ainda que as partes tenham, sob um aspecto formal, mantido relação de representação comercial.
Nesse sentido, é o trecho da fundamentação do voto do Exmo. Ministro Barroso (relator para o acórdão):
“23. Ademais, a competência material é definida em função do pedido e da causa de pedir. Conforme decidiu esta Suprema Corte, a definição da competência decorre da ação ajuizada. Tendo como causa de pedir relação jurídica regida pela CLT e pleito de reconhecimento do direito a verbas nela previstas, cabe à Justiça do Trabalho julgá–la; do contrário, a competência é da Justiça comum (CC 7.950, Rel. Min. Marco Aurélio)”.
O processo que ensejou o julgamento do Tema 550 diz respeito à hipótese em que a relação de representação comercial é reputada válida por ambas as partes, que discutem apenas parcelas decorrentes do próprio contrato, ou seja, em que não havia discussão quanto à existência ou não de relação de emprego, não sendo questionada a validade da relação de representação comercial, somente o cumprimento das obrigações relativas ao contrato de representante comercial, como, por exemplo, eventuais comissões pagas a destempo.
E, ainda, é o parágrafo seguinte do voto do Exmo. Ministro Barroso:
“24. Os autos tratam de pedido de indenização decorrente da rescisão do contrato de representação comercial, não estando em discussão qualquer obrigação de índole trabalhista, de vínculo ou remuneração, mas apenas discussão acerca do descumprimento do contrato de representação comercial, com o requerimento do pagamento das comissões atrasadas. O pedido e a causa de pedir, assim, não têm natureza trabalhista, a reforçar a competência do Juízo Comum para a apreciação e o julgamento da demanda.”
Entretanto, na prática, muito pouco esta decisão mudou no cenário. Isso porque a maioria esmagadora das ações envolvendo representantes comerciais possui também pedido de reconhecimento de vínculo de emprego, pelo que a Justiça do Trabalho continuava reconhecendo sua competência e, na prática, julgando as lides decorrentes da relação comercial.
Ocorre que, recentemente, confirmando a tendência do STF em reconhecer válidas as diversas formas de trabalho, nos autos da Reclamação Constitucional (Rcl) 71.670/SP, em decisão monocrática, o relator Exmo. Ministro Dias Toffoli afirmou que o pedido de reconhecimento de relação de emprego não descaracteriza a competência da Justiça Comum para se manifestar sobre a presença dos requisitos configuradores da relação jurídica estabelecida com fundamento na Lei nº 4.886/65.
Nesse sentido foi a decisão do Exmo. Ministro Dias Toffoli:
“Havendo precedentes de observância obrigatória no sentido de que “[a] proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer prestação remunerada de serviços configure relação de emprego (CF/1988, art. 7º)” (ADC nº 48) e da competência da Justiça Comum para “julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que não há relação de trabalho entre as partes” (Tema nº 550 RG), tenho que o pedido de reconhecimento de relação de emprego não descaracteriza a competência da Justiça Comum para se manifestar sobre a presença dos requisitos configuradores da relação jurídica estabelecida com fundamento na Lei nº 4.886/65, devendo a solução da presente reclamatória ser orientada, mutatis mutandis, pela ratio que informa o julgamento de controvérsias acerca da competência da Justiça Comum para apreciar a relação regida pela Lei nº 11.442/07”
E continua:
“Concluo pela aderência estrita do debate acerca da regularidade do contrato de representação comercial firmado entre as partes com o julgado nas ações paradigmas, e consequentemente pela incompetência da Justiça Trabalhista para se manifestar acerca da relação jurídica estabelecida entre as partes no período em que vigorou o referido contrato, conforme entendimento firmado na Corte no Tema nº 550 da RG”
As recentes decisões proferidas pelo Supremo, tanto pelas Turmas, tanto pela maioria dos Ministros, da atual composição, têm deixado cada vez mais claro que o posicionamento da Corte caminha no sentido de privilegiar a liberdade de organização produtiva dos cidadãos, entendendo, em sua maioria, que a transformação do mercado de trabalho permite a adoção de novos modelos de relação profissional que não se configuram como relação de emprego.
Todavia, considerando o cenário de tensão que já existe entre a Justiça do Trabalho e o STF, a recente decisão certamente vai causar reação nos Magistrados, Desembargadores e Ministros da Justiça do Trabalho que possuem a tendência de defender a manutenção da competência da Justiça do Trabalho.
O argumento dos defensores da competência da justiça laboral se baseará, certamente, no fato de que passaria a justiça comum a analisar o que seria de competência da justiça especializada julgar, em uma possível inversão do que determina o ordenamento jurídico vigente, no qual a justiça comum decide sobre matéria residual. O argumento também girará em torno da morosidade da Justiça Comum que aumentará o tempo de julgamento dos casos, levando a uma maior demora para satisfação de eventual crédito do jurisdicionado.
Ainda, haverá grande discussão em torno da impossibilidade de análise pela Justiça Comum dos requisitos para configuração da relação de emprego. Não se pode esquecer que a Justiça do Trabalho tem como um de seus princípios, o princípio da primazia da realidade, , o qual privilegia a realidade sobre a forma, e é considerado na resolução das relações levadas a apreciação do poder judiciário, que além de analisar as questões sobre o ponto de vista da hipossuficiência do trabalhador, também analisa se os requisitos caracterizadores do vínculo empregatício (Art. 3º da CLT), estão presentes na prestação de serviços em contrapartida ao que está documentado nos instrumentos assinados.
O julgamento pela Justiça Comum, em contrapartida, tem a tendência de analisar a relação comercial tida entre representante comercial e representada de forma a considerar as partes em situação de equilíbrio, trazendo maior objetividade à análise da relação que é estritamente comercial e valorização da prova documental e dos termos dos contratos firmados por pessoas capazes e sem demonstração de vício de consentimento e vontade, nem mesmo de fraude.
A decisão do STF inaugura mais um tema para se travar uma longa discussão entre Justiça do Trabalho e STF, o que não é novidade nos últimos anos, e certamente está longe de acabar.