Pacto Federativo e o STF: a consolidação da ADPF como ferramenta de controle de constitucionalidade de leis municipais no Setor de Telecomunicações
Por Pietra Cardoso Faria
A posição da Corte Constitucional, de forma centralizada, como guardiã do sistema federativo e árbitra dos conflitos que venham a surgir entre os entes federados encontra semelhança em muitos países, se destacando, quanto a isso, Alemanha, Brasil e Estados Unidos.
Tal ideal tem origem nos clássicos artigos federalistas, nos quais Alexander Hamilton esclarecia que somente uma Corte Constitucional Federal poderia ter a competência para declarar a inconstitucionalidade de leis locais violadora das competências centrais da União2. Em outras palavras, a Corte Constitucional é um dos pilares dos Estados Democráticos.
É importante ressaltar que, como o federalismo norte-americano formou-se pela união de Estados confederados, os Artigos Federalistas possuíam argumentos favoráveis à centralização do poder3. Posteriormente, tal teoria foi melhor desenvolvida, haja vista os diversos modelos de federalismo existentes no mundo, como são Brasil e Alemanha.
No caso brasileiro, o cenário é bem mais complexo. Isso porque, em que pese a Constituição Federal de 1988 tenha optado por uma repartição de competências constitucionais, administrativas e legislativas muito bem delineadas, ela também exigiu que isso fosse feito de forma cooperada entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Ou seja, o federalismo brasileiro exige reciprocidade entre entes federativos.
No entanto, o consagrado desenho constitucional do federalismo brasileiro não foi suficiente para evitar recorrentes conflitos federativos, sobretudo, após a inclusão dos munícipios enquanto ente federativo, arranjo este, único no mundo. A partir disso, muitos são os conflitos de competências que circundam questões tributárias, administrativas e legislativas. Conhecida, é a Guerra Fiscal de ICMS. Familiar, é a questão das competências ambientais. Habitual, é o tema da responsabilidade para fornecimento de medicamentos de alto custo pelo sistema SUS. Comum, é a discussão sobre competências legislativas no setor de telecomunicações.
Como todos esses conflitos partem da multiplicidade de interpretações conferidas ao texto constitucional, é natural que o Supremo Tribunal Federal (STF), como “Guardião da Constituição”, na dicção de Hans Kelsen, bem como pela prescrição feita pelo art. 102, da CF, tenha ganhado elevado destaque como “árbitro de grandes crises da Federação”4.
Entretanto, a análise da atuação do STF, enquanto árbitro do sistema federativo brasileiro, deve observar uma característica peculiar da Corte brasileira, qual seja, suas atribuições extrapolam, em muito, o âmbito de atuação cotidiano de uma Corte Constitucional. De fato, a Constituição Federal de 1988, além de reconhecer a clássica atribuição do STF como guardião da Constituição, conforme já destacado, lhe deferiu inúmeras outras competências originárias, do tributário ao penal, o que gera, por si só, uma dificuldade na deliberação de temas caros ao país.
No que se refere ao conflito federativo, tal confronto pode chegar ao STF essencialmente no controle de constitucionalidade (concentrado ou difuso), quando se discute a distribuição de competências legislativas entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Nesse ponto, é interessante esclarecer que grande parte dos estudos sobre o impacto da jurisprudência do STF sobre o federalismo brasileiro restringem-se à análise das decisões quantos à conflitos entre União e Estados.
Assim, a despeito de diversos estudos e artigos dedicados a analisar a jurisprudência federalista e os fundamentos das decisões do STF em sede de conflitos entre União e Estados, a atuação dessa Corte enquanto Tribunal da Federação, ou seja, enquanto órgão judicial responsável por solucionar os conflitos federativos entre União e Municípios, tem crescido nos últimos anos. O que aumenta o interesse nos instrumentos pelos quais essas discussões podem chegar ao Órgão de Cúpula do Judiciário Brasileiro.
Diante da impossibilidade de se estudar todas as espécies processuais que podem ser utilizadas para o acionamento do conflito federativo, o presente artigo se volta para a análise da consolidação da ADPF como ferramenta de controle de constitucionalidade de leis municipais em conflito com leis da União. A completa ausência do estudo do conflito federativo sob tal enfoque confere um caráter desafiado ao presente artigo, que, em hipótese alguma, pretende esgotar o tema.
Feita uma breve introdução quanto ao tema do federalismo e sua relação com as Cortes Constitucionais, é necessária desenvolver algumas linhas acerca da ADPF. A ADPF é conhecida como sendo a ação de controle concentrado de constitucionalidade subsidiária, ou seja, a ação que somente poderá ser manejada mediante a comprovação de inexistência de outro meio processual para resolver a questão constitucional. Nos ensinamentos do Professor Drº Georges Abboud: “Os antecedentes do instituto remontam à Constituição do Reino da Baviera de 1808, reino que hoje corresponde ao estado da Baviera na república alemã. Atualmente, o agravo constitucional (verfassungsbeschwerde) consta do art. 93-A da Constituição Federal Alemã (GG). A importância do agravo constitucional alemão dá características de sua essência: proteger a todos contra os descumprimentos de preceitos constitucionais fundamentais perpetrados pelo poder público. Na Alemanha, portanto, é de a essência do instituto ser utilizado por qualquer do povo. Esse instituto alemão inspirou a carta brasileira na criação da nossa ADPF5.”
No Brasil, a ADPF foi instituída pela Constituição de 1988, no § 1º do art. 102. Posteriormente, fora publicada a da Lei nº 9.882/1999, disciplinando a ADPF: “…será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também arguição de descumprimento de preceito fundamental: I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.”
Assim, as normas constitucionais violadas, se qualificam como preceitos fundamentais, autorizando, assim, a instauração da via eleita, consoante a jurisprudência do próprio STF, como, por exemplo, a ADPF nº 388, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, nos seguintes termos: “Inegável qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, dentre outros), dos princípios protegidos por cláusula pétrea (art. 60, § 4º, da CF) e dos ‘princípios sensíveis’ (art. 34, VII). A lesão a preceito fundamental configurar-se-á, também, com ofensa a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a um desses princípios. (…)”
Ressalta-se que durante muito tempo a Corte impôs óbices ao exame, via ADPF, de atos normativos municipais, por entender não se configurar o requisito da subsidiariedade. No entanto, tal posição foi sendo suplantada ao longo dos anos, de modo que, hoje, é pacífica a possibilidade de questionamento, via ADPF, da constitucionalidade da lei municipal, tendo como parâmetro de constitucionalidade a Constituição Federal.
Outro não poderia ser o entendimento. Isso porque a ADPF é a única ação de controle concentrado de constitucionalidade que possibilita a impugnação de lei ou ato normativo municipal perante a Suprema Corte, mercê do que dispõe o Ministro Gilmar Mendes, em sede doutrinária: “É o que ocorre, fundamentalmente, nas hipóteses relativas ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre o direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em face do não cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da arguição de descumprimento.”6
Ademais, para além dos avanços doutrinários quanto ao tema, a jurisprudência do STF tem se pacificado nesse sentido, a exemplo da ADPF nº 449, de relatoria do ministro Luiz Fux, em que a Corte se posicionou no sentido de que: “A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é cabível em face de lei municipal, adotando-se como parâmetro de controle preceito fundamental contido na Carta da República.”
Nesse contexto, em que pese uma resistência inicial da Corte, as ADPF nº 1031, de relatoria do ministro Nunes Marques, ADPF nº 732, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski e ADPF nº 731, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, ajuizadas entre 2021 e 2023 – período em que a Corte tem demonstrado uma evolução jurisprudencial quanto às ações cabíveis nos conflitos federativos entre União e Municípios – o STF consolidou a ADPF como ferramenta de controle de constitucionalidade de leis municipais em conflito com leis da União.
As ações mencionadas buscavam solucionar a questão constitucional referente ao conflito de competência entre União e Municípios acerca do disciplinamento do Setor de Telecomunicações. As ADPFs 1031, 732 e 731 impugnaram atos normativos municipais que violaram, como regra, os seguintes preceitos constitucionais: princípio federativo (art. 1º, caput); autonomia dos entes federativos (art. 18, caput); competência da União para editar normas gerais (art. 24, §2º); Competência da União para tratar de telecomunicações (art. 24, XII); competência privativa da União para legislar sobre radiodifusão (art. 22, IV); a forma federativa de Estado (art. 60, §4º, I). Isso porque, alguns municípios, sob o pretexto de legislar sobre direito do consumidor ou direito à saúde, cuja competência constitucional é concorrente, acabam por invadir as atribuições da União quanto a legislar sobre Telecomunicações.
Em ordem cronológica, a ADPF nº 731, julgada em 2021, estabeleceu que: “…impugnada lei municipal em face do sistema constitucional de repartição de competências legislativas, mostra-se adequada a arguição considerado o atendimento à subsidiariedade do instrumento.” A Corte destaca, ainda, que: “O rótulo de federal não garantiria a forma de Estado adotada se não se tivesse, paralelamente, no sistema, estabelecido regime de distribuição de competências a garantir espaço de autonomia de cada qual dos entes federados”. E finaliza: “a atribuição dos Municípios para legislar sobre interesse local não os autoriza a estabelecer normas que veiculem matérias que a própria Lei Maior conferiu ao ente central”.
Outra não foi a posição adotada na ADPF nº 732, após reconhecer o cabimento da ação, a Corte (citando expressamente a ADPF nº 731) destacou que: “Em um sistema federativo equilibrado não podem coexistir, como regra, normas distintas que disciplinem matérias semelhantes. Se tal fosse admissível, ao invés de harmonia federativa, veríamos grassar a assimetria, o desequilíbrio, enfim, o caos normativo. É exatamente isso que a nossa sofisticada engenharia constitucional pretende evitar.”
Na ADPF nº 1031, o STF destacou que: “Supremo cristalizou o entendimento de que a ADPF constitui instrumento nobre de fiscalização abstrata de normas, dotado de eficácia erga omnes e vocacionado a evitar ou reparar lesão a preceito fundamental provocada por ato do poder público”. Ademais, apontou nobres ensinamento e limitações a respeito do conflito federativo entre União e Municípios, destacando, “Em vista da necessidade de um poder central que mantenha a coesão do País e realize papel aglutinador das unidades e dos poderes, a Constituição de 1988 reservou à União a atribuição de disciplinar os temas mais importantes e de elaborar normas gerais em relação aos demais”.
Diante de todo o exposto, ressalta-se que o STF, hoje, talvez seja a instituição mais estudada pelos constitucionalistas brasileiros. Raramente são produzidos trabalhos científicos que não envolvam, ainda que indiretamente, decisões do STF. Entretanto, no tocante ao impacto da jurisprudência do STF sobre o federalismo brasileiro, os estudos ainda têm negligenciado a ADPF como ferramenta de controle de constitucionalidade de leis municipais em conflito com leis da União, sobretudo, no pantanoso Setor de Telecomunicações.
Assim, no presente artigo, foi possível perceber que as contribuições do STF enquanto árbitro da federação vão além da tão conhecida “Guerra fiscal de ICMS” ou repartição de receitas tributárias. Há, no caso brasileiro, conflitos entre União e Municípios que precisam ser resolvidos, igualmente, pela Corte Constitucional. Ainda que o presente artigo não tenha como objetivo esgotar ou doutrinar sobre o tema, as reflexões preliminares aqui trazidas demonstram a necessidade de se promover novos e mais aprofundados estudos sobre o papel do STF enquanto árbitro da Federação, considerando não somente União e Estado, mas, também, inserindo os municípios dentro da equação federalista brasileira, bem como os meios processuais adequados para que o “Árbitro-Federativo” esteja em campo.
Referências:
ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. rev., atual. e ampl. São Paulo, 2019, pag. 586.
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1031 (DJe 04/10/2023), de relatoria do ministro Nunes Marques.
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 2970 (DJe 28/04/2022), de relatoria do ministro André Mendonça.
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 449 (DJe 02/09/2019), de relatoria do ministro Luiz Fux.
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 731 (DJe 10/02/2021) de relatoria da ministra Cármen Lúcia.
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 732 (DJe 18/05/2021), de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski.
Dantas, Andrea de Quadros. O STF como árbitro da federação: uma análise empírica dos conflitos federativos em sede de ACO. Revista Direito GV 16 (2020).
Hamilton, Alexander. O federalista. Hamilton, Madison e Jay. – Belo Horizonte: Ed. Líder, 2003, p. 467.
MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. Ed. 12, rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2017, pag. 1372.