O (des)acordo de cooperação técnica em matéria de combate à corrupção

Por Priscilla de Souza Pestana Campana

* Texto publicado em 17 de agosto no portal Jota

Em 06/08/2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal de Contas da União (TCU), a Advocacia-Geral da União (AGU), a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Ministério de Justiça e Segurança Pública formalizaram, em cerimônia virtual presidida pelo Ministro Dias Toffoli, acordo de cooperação técnica para combate à corrupção. De acordo com seu texto, o objetivo do acordo é “construtiva e cooperativamente se aperfeiçoar o sistema de prevenção e combate à corrupção”[1], estabelecendo princípios e regras para uma atuação conjunta e coordenada das instituições de controle, de moco a evitar sobreposições e conflitos que desencadeiam em insegurança jurídica.

A pretensa atuação coordenada com vistas ao afastamento da insegurança jurídica fica, no entanto, apenas no plano das ideias por enquanto. Isso porque, apesar de constar o nome do Procurador-Geral da República Augusto Aras dentre os signatários, a cerimônia não contou com a participação do Ministério Público Federal (MPF), que até o momento não aderiu ao acordo.

Em 11/08/2020, a Câmara de Combate à Corrupção do MPF (5CCR/MPF) divulgou nota técnica defendendo a não adesão da instituição ao acordo de cooperação. Segundo a 5CCRMPF, dentre outras questões, “o acordo celebrado não contribui para uma cooperação interinstitucional sistemática em matéria de leniência. Ao contrário, esvazia a atuação de diversos órgãos – dentre eles o próprio MPF – indispensáveis para uma atuação conjunta eficiente, em prejuízo da segurança jurídica da colaboração”[2]. Para o Ministro Dias Toffoli, porém, o acordo “não cria nem retira competências, pois estas decorrem da Constituição e das leis”[3].

No entanto, independentemente da pertinência ou não das razões jurídicas evocadas pelo Ministério Público Federal para não aderir ao documento – o que não é o foco desta análise –, é preciso reconhecer que sua participação é essencial num acordo de cooperação técnica que pretenda, de fato, afastar a insegurança jurídica decorrente da falta de interação institucional na celebração dos acordos de leniência.

É preciso lembrar que as pessoas jurídicas são “ficções legais” e que seus ilícitos são, antes de tudo, cometidos por pessoas físicas, que podem responder pessoalmente pelos atos praticados em nome da empresa. E não há dúvida de que, dentre as esferas de responsabilização – penal, civil e administrativa – a primeira, de titularidade do Ministério Público, exerce um peso preponderante nos incentivos de quem pretende confessar os ilícitos praticados em nome da empresa, já que a liberdade, sem dúvida, é um dos direitos fundamentais mais caros ao ser humano.

De que adianta confessar grandes ilícitos cometidos pela pessoa jurídica se a liberdade da pessoa física continuará ameaçada? E isso se agrava ainda mais quando se observa que a gestão de muitas empresas no Brasil, grandes e pequenas, é familiar – vide as principais empresas que celebraram acordos de leniência com o Estado –, reforçando a necessidade de uma atuação conjunta e coordenada na responsabilização das pessoas físicas e jurídicas, de modo a gerar os incentivos necessários para a confissão dos ilícitos. A presença do MPF, portanto, é fundamental para um acordo que efetivamente pretenda atender aos anseios de maior cooperação e coordenação na atuação dos órgãos de repressão à corrupção.

A ausência de participação do Parquet federal e a inexistência de um efetivo acordo entre as principais autoridades do sistema brasileiro de combate à corrupção expõe um dos principais obstáculos à pretensa cooperação: a grande fragmentação institucional entre os múltiplos órgãos de controle da Administração Pública e o consequente conflito que ela gera.

Num ambiente em que há vários órgãos públicos, autônomos e independentes, atuando no mesmo sentido – controlando a atuação ordinária da Administração Pública e sua relação com particulares –, é inevitável que haja um conflito pela maximização de suas competências institucionais, especialmente quando o cenário político é de instabilidade e de constantes revelações de escândalos de corrupção.

Diante da pulverização do sistema de fiscalização da Administração Pública e da ausência de uma rede normativa que efetivamente estruture e delimite as respectivas atribuições de cada agente, as múltiplas instâncias de poder tenderão, naturalmente, a ampliar o espectro de suas respectivas atuações, de modo a expandir sua esfera de influência sobre as ações de combate à corrupção. Esse ambiente, porém, acaba não propiciando o estabelecimento de mecanismos de colaboração e coordenação interinstitucional, como bem revela a discordância em relação aos termos do acordo de cooperação técnica proposto: o conflito se pauta, essencialmente, no dissenso a respeito da preservação de competências legais.

Portanto, apesar da elogiável a iniciativa de se promover uma articulação institucional entre as principais autoridades brasileiras de combate à corrupção, a ausência de um consenso entre todas as signatárias do acordo anunciado mostra que a efetiva cooperação entre as autoridades de controle ainda está longe de se alcançar. Quem perde, porém, é o interesse público: permanece a insegurança jurídica e reduzem-se os estímulos para a adoção de práticas lenientes, num contexto em que os mecanismos consensuais vem mostrando cada vez mais sua importância no desvendamento de casos de corrupção.

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[1] Texto do acordo disponível em . Acesso em 12 ago 2020.

[2] Disponível em . Acesso em 12 ago 2020.

[3] Disponível em < https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=449073&ori=1.. Acesso em 12 ago 2020.