O conteúdo do art. 105-a da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997) e o (des)estímulo à consensualidade
Por Izabella Ribeiro Xavier
No primeiro artigo desta trilogia, abordamos aspectos gerais acerca da compatibilidade do princípio da consensualidade com o direito eleitoral. Agora, passaremos a analisar, de modo mais específico, a Lei das Eleições e sua normatividade sobre os consensos na seara eleitoral.
Com efeito, o art. 105-A da Lei nº 9.504/1997 dispõe que, “em matéria eleitoral, não são aplicáveis os procedimentos previstos na Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985”. O dispositivo se refere aos procedimentos existentes na Lei de Ação Civil Pública, notadamente os trâmites processuais em si, bem como os instrumentos materiais de efetivação da tutela de direitos difusos e coletivos: inquérito civil público e termo de ajustamento de conduta.
Não é novo o questionamento acerca da constitucionalidade do referido dispositivo[1], que vinha sendo debatida no âmbito da ADI nº 4352/DF, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) para questionar esse e inúmeros outros artigos da legislação eleitoral. Entre os fundamentos utilizados pela agremiação em sua petição inicial, citou-se a ofensa ao art. 129, III, da CF/88 no que tange à proteção do patrimônio público e do meio ambiente, defendendo-se o retrocesso do dispositivo dentro da missão institucional, e constitucional, do Ministério Público.
A referida ação direta de inconstitucionalidade, no entanto, foi extinta em setembro de 2022, sem exame de mérito, considerando que a parte autora não se desincumbiu do ônus de adequar as razões e o pedido formulados na petição inicial, e tampouco regularizou sua representação processual. A jurisdição, portanto, está novamente carente de provocação, estando o dispositivo em vigor até que seja declarado inconstitucional em sede de controle concentrado.
A partir disso, o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral inicialmente era o de que não seria possível a instauração de inquéritos civis públicos pelo Ministério Público Eleitoral, com fundamento na referida exclusão de aplicabilidade[2]. No ano de 2015, no entanto, o TSE alterou a sua jurisprudência no sentido de confirmar a licitude das provas colhidas em sede de ICPs:
“RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012. PREFEITO. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA AOS AGENTES PÚBLICOS. ART. 73, § 10, DA LEI 9.504/97. PRELIMINARES REJEITADAS. ART. 105-A DA LEI 9.504/97. APLICABILIDADE ÀS AÇÕES ELEITORAIS. MÉRITO. PROGRAMA SOCIAL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO EM LEI PRÉVIA. MULTA. DESPROVIMENTO.
1. Consoante o art. 301, §§ 1º a 3º, do CPC, a coisa julgada configura-se quando se reproduz ação assim entendida como a que possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido já decidida por sentença transitada em julgado, o que não ocorreu na espécie, notadamente porque o objeto da presente ação é distinto do da AIME 10-28/MG.
2. A interpretação do art. 105-A da Lei 9.504/97 pretendida pelo recorrente no sentido de que as provas produzidas em inquérito civil público instaurado pelo Ministério Público Eleitoral seriam ilícitas não merece prosperar, nos termos da diversidade de fundamentos adotados pelos membros desta Corte Superior, a saber:
2.1. Sem adentrar a questão atinente à constitucionalidade do art. 105-A da Lei 9.504/97, ressalte-se que i) da leitura do dispositivo ou da justificativa parlamentar de sua criação não há como se retirar a conclusão de que são ilícitas as provas colhidas naquele procedimento; ii) a declaração de ilicitude somente porque obtidas as provas em inquérito civil significa blindar da apreciação da Justiça Eleitoral condutas em desacordo com a legislação de regência e impossibilitar o Ministério Público de exercer o seu munus constitucional; iii) o inquérito civil não se restringe à ação civil pública, tratando-se de procedimento administrativo por excelência do Parquet e que pode embasar outras ações judiciais (Ministros João Otávio de Noronha, Luciana Lóssio e Dias Toffoli).
2.2. Ao art. 105-A da Lei 9.504/97 deve ser dada interpretação conforme a Constituição Federal para que se reconheça, no que tange ao inquérito civil público, a impossibilidade de sua instauração para apuração apenas de ilícitos eleitorais, sem prejuízo de: i) ser adotado o Procedimento Preparatório Eleitoral já previsto pelo Procurador-Geral da República; ou ii) serem aproveitados para propositura de ações eleitorais elementos que estejam contidos em inquéritos civis públicos que tenham sido devidamente instaurados, para os fins previstos na Constituição e na Lei 7.347/85 (Ministros Henrique Neves e Gilmar Mendes).
2.3. O art. 105-A da Lei 9.504/97 é inconstitucional, pois: i) o art. 127 da CF/88 atribuiu expressamente ao Parquet a prerrogativa de tutela de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais individuais indisponíveis, de modo que a defesa da higidez da competição eleitoral e dos bens jurídicos salvaguardados pelo ordenamento jurídico eleitoral se situa no espectro constitucional de suas atribuições; ii) a restrição do exercício de funções institucionais pelo Ministério Público viola o art. 129, III, da CF/88, dispositivo que prevê o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos; iii) houve evidente abuso do exercício do poder de legislar ao se afastar, em matéria eleitoral, os procedimentos da Lei 7.347/1985 sob a justificativa de que estes poderiam vir a prejudicar a campanha eleitoral e a atuação política de candidatos (Ministros Luiz Fux e Maria Thereza de Assis Moura)”[3].
Referido entendimento foi sucessivamente seguido pelo Tribunal, que concluiu que a instauração de inquéritos civis não ofenderia o art. 105-A da Lei das Eleições:
“A instauração de inquérito civil pelo Parquet para apurar a prática de ilícitos eleitorais não ofende o art. 105-A da Lei 9.504/97, tendo esta Corte Superior já decidido que: ‘Admite-se instauração de inquérito civil pelo Parquet para apurar prática de ilícitos eleitorais e, com maior razão, Procedimento Preparatório Eleitoral (PPE), iniciado no caso dos autos mediante portaria ministerial” (AgR-Respe 1318-23, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 26.3.2018)”[4].
Ocorre, no entanto, que não parece haver uniformidade no entendimento do Tribunal quanto à interpretação do art. 105-A, considerando que ainda remanesce a conclusão de que não seria possível firmar termos de ajustamento de conduta – com fundamento na mesma exclusão de aplicabilidade:
“Representação eleitoral. Descumprimento de termo de ajustamento de conduta. 1. A realização de termos de ajustamento de conduta previstos no art. 5º, §6º, da Lei nº 7.347/85 não é admitida para regular atos e comportamentos durante a campanha eleitoral, consoante dispõe o art. 105-A da Lei nº 9.504/97. 2. A regulamentação da propaganda eleitoral não pode ser realizada por meio de ajuste de comportamento realizado por partidos, coligações ou candidatos, ainda que na presente do Ministério Público e do Juiz Eleitoral, nos quais sejam estipuladas sanções diferentes daquelas previstas na legislação eleitoral”[5].
Nesse sentido, a doutrina especializada sempre se manifestou no sentido de que os chamados termos de ajustamento de conduta não estariam positivados tão somente na LACP, não havendo intenção legislativa de proibi-los no âmbito da justiça eleitoral[6]. Com isso, não haveria justificativa para utilizar como fundamento normativo o disposto no art. 105-A, considerando inclusive que o próprio TSE já o declarou inconstitucional em sede de controle incidental[7].
Vê-se, portanto, que a falta de uniformidade na linha de entendimento do Tribunal pode estar sendo capaz de afastar, sem necessidade justificável, a implementação da lógica da consensualidade no âmbito da Justiça Eleitoral, considerando que a experiência nos mostra que a litigiosidade não é o mecanismo mais eficaz para a solução de todos os casos[8], devendo (a) o litígio ser reservado para circunstâncias graves, e (b) o consenso ser utilizado como concretizador da duração razoável do processo eleitoral, inclusive como forma de se ter melhor timing[9] quanto à tutela do pleito eleitoral e da igualdade de oportunidades.
Com isso, e retomando ao aceno recente do Tribunal para a celebração de negócios jurídicos processuais, conforme adiantado no artigo anterior (caso MDB/MPE e participação feminina na política), propõe-se a adequação do entendimento da Corte à possibilidade de os players eleitorais firmarem termos de ajustamento de conduta – ou mesmo instrumentos negociais de modo mais amplo –, sem que se utilize o art. 105-A da Lei das Eleições como fundamento para excluir essa possibilidade.
Nesse contexto, passa-se a analisar, no próximo artigo, o cabimento do ANPC no âmbito da Justiça Eleitoral, instrumento inegavelmente incluído na lógica inerente ao princípio da consensualidade.
[1] “Via interpretação sistemática, verifica-se que a norma está em dissonância com o postulado constitucional que propõe o combate à improbidade administrativa e a proteção do patrimônio público e social. Trata-se de norma incompatível com a Carta Mãe e, portanto, inconstitucional. A Constituição Federal consagra os princípios da moralidade e da probidade, o princípio democrática e a coibição ao abuso de poder político e econômico. A redação do art. 105-A da Lei 9.504/1997 vai totalmente de encontro a tais desideratos. O norte do legislador constitucional ao munir o Ministério Público da ACP e do ICP (art. 129, lll) foi facilitar a proteção do patrimônio público e social. Foge à lógica admitir-se a restrição à atuação do Ministério Público em tal caso. É limitar o raio de ação do Parquet. É como acorrentar os agentes ministeriais e deixar à sorrelfa a proteção ao patrimônio público no pleito eleitoral, no qual toda sorte de arbitrariedade tende a ocorrer” (destaques acrescidos). In:Peleja Júnior, Antônio Veloso. Direito Eleitoral: aspectos processuais, ações e recursos. 4 ed. Curitiba: Juruá, 2016. Páginas 104-105.
[2] Recurso Ordinário nº 4746-42, Manaus/AM, redator para o acórdão Min. Marco Aurélio, em 26.11.2013.
[3] Recurso Especial Eleitoral nº 54588, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 04.11.2015.
[4] Agravo de Instrumento nº 22187, Rel. Min. Sergio Oliveira Banhos, DJ 16.09.2019.
[5] Recurso Especial Eleitoral nº 32231, Rel. Min. Henrique Neves, DJ 30.05.2014.
[6] “Em consonância com o tema, a nova lei não vedou a formulação do chamado Termo de Ajustamento de Conduta, previsto no art. 5º, §6º, da Lei nº 7.347/1985. A menção referente à não aplicação dos procedimentos da Lei de Ação Civil Pública em matéria eleitoral significa que não podem valer as regras da própria lei quanto ao rito processual, legitimados ativos e passivos, formação de litisconsórcio, efeitos da coisa julgada e temas ligados aos atos sucessivos e contínuos da lei da ação civil pública. O termo de ajustamento de conduta é um instrumento de real valia e de proteção de norma fundamental democrática que previne lides e deve ser estimulado e usado em matéria eleitoral, por exemplo, para que os Promotores Eleitorais junto com os partidos políticos nas comarcas do interior possam firmar um compromisso de aplicar os recursos do fundo partidário na educação sonora e o lixo urbano produzido por cartazes e panfletos jogados na via pública e que atingem questões ambientais. Os TACs têm previsão em outras normas legais como, por exemplo, na Lei nº 8.069/1990, art. 211 (ECA), CLT, art. 627-A e Lei nº 9.605/1998 (Lei Ambiental), art. 79-A, não sendo a intenção do legislador proibi-los, pois, se assim o fosse, teria expressamente feito menção à vedação da celebração desses acordos. Como se nota, a Lei da Ação Civil Pública não é a única que trata do compromisso de ajustamento de condutas. Os termos de ajustamento de conduta não se configuram como procedimentos, nem tampouco procedimentos específicos da lei de ação civil pública, pois independentemente da posição doutrinária quanto à sua natureza jurídica (para alguns, transação, para outros, reconhecimento jurídico do pedido etc), o que se pode verificar de plano, é que o TAC é um ato único, e não um procedimento, já que não se desenvolve em um rito a objetivar uma decisão final. Por ele se tem um acordo de vontades. É salutar que o acordo celebrado possa somar esforços para melhorar o aperfeiçoamento das eleições em determinadas cidades e locais, especialmente em função de aspectos ambientais. Por exemplo, o lixo eleitoral”. In: Ramayana, Marcos. Direito Eleitoral. 15 ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2016. Págs. 231-232.
[7] “Não é mais possível admitir, como justificativa para a escusa da aplicação do direito premial de natureza cível na justiça eleitoral o artigo 105-A da Lei das Eleições, vez que o próprio TSE, por reiteradas vezes, já declarou a inconstitucionalidade do dispositivo – AgR-REsp 1318-23, Rel. Min. Jorge Mussi – admitindo o manejo de inquérito civil público eleitoral. Na esteira do que defende o professor Igor Pereira Pinheiro, em sua Lei Anticrime Comentada, a limitação ficaria adstrita a alguma circunstância em que a condenação judicial repercutiria na seara eleitoral com inelegibilidade, pois, nessa hipótese, apenas lei complementar poderia excluí-la, por força do art. 14, §9º, da CF/88 (…). Obviamente, os impedimentos ordinários para celebração de acordos na justiça comum são extensíveis à justiça eleitoral, como a vedação de pactuar se o investigado ou processado for reincidente na prática de ilícitos eleitorais, se houver indícios de práticas de ilícitos reiterada ou profissionalmente ou se o investigado tiver sido beneficiado nos últimos 5 (cinco) anos com acordo semelhante” (destaques acrescidos). In: Alves Ribeiro, Carlos Vinícius. Acordos na Justiça Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2020. Páginas 84-85.
[8] Pinheiro, Igor Pereira. Reflexos eleitorais na nova lei de improbidade administrativa. São Paulo: Editora Mizuno, 2022. Pág. 110.
[9] Quanto ao ponto, apenas um exemplo simples em termos de timing eleitoral: não seria mais adequado para a tutela da isonomia do processo eleitoral a celebração de TAC dentro de circunstância pré-campanha, a fim de se evitar propaganda eleitoral antecipada/irregular, do que colher os frutos de processo judicial que provavelmente não será julgado antes do término das eleições – em situação notadamente repressiva, que não foi capaz de repelir condutas capazes de macular a competitividade entre os candidatos?