Medidas constritivas atípicas no âmbito da inadimplência do devedor: limites constitucionais do direito de ir e vir

Por Giulia Bastos e Isabela Oliveira 

A inadimplência é um desafio persistente enfrentado por credores e instituições financeiras em todo o mundo. O não cumprimento das obrigações de pagamento por parte do devedor podem causar sérios transtornos financeiros e operacionais para os credores. Para lidar com esse problema, tradicionalmente, medidas constritivas típicas, como penhoras, arrestos e bloqueios de contas, são empregadas para garantir o pagamento da dívida. No entanto, em alguns casos, essas medidas podem não ser eficazes o suficiente ou podem gerar impactos adversos para ambas as partes envolvidas. É nesse contexto que surgem as medidas constritivas atípicas. 

As medidas constritivas atípicas representam procedimentos alternativos e subsidiários adotados pelo poder judiciário para garantir o cumprimento de uma obrigação, dando efetividade às decisões jurídicas, modernizando a fase de execução e habilitando os magistrados a investigarem abordagens não convencionais quando as medidas típicas se mostrarem ineficazes. O Código de Processo Civil prevê no art. 139, inciso IV, a possibilidade da adoção de “todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”. Esse dispositivo se difundiu amplamente em pouco tempo, especialmente devido às ordens de retenção de passaportes e carteira nacional de habilitação (CNH).  

Nesse sentido, com a aplicação das mais diversas medidas excepcionais, surgiram inúmeras problemáticas acerca das constrições que perpassam os bens e patrimônio do executado: a sua constitucionalidade e até onde é possível restringir o devedor sem violar seus direitos fundamentais, como o de ir e vir. Apesar de, inicialmente, as formas constritivas atípicas apresentarem um caráter mais radical, suas aplicabilidades se dão apenas mediante o preenchimento de alguns requisitos. Exemplificando, para que a execução recaia sobre documentos do devedor, como sua CNH ou passaporte, deve o magistrado (i) observar o princípio do contraditório e da ampla defesa; (ii) determinar a restrição mediante decisão fundamentada; (iii) esgotar as vias executivas típicas e (iv) certificar-se de que o devedor possui patrimônio expropriável. 

Nesse contexto, infere-se que as medidas restritivas alternativas, por carregarem caráter subsidiário, não violam direitos fundamentais, tampouco limitam o direito de ir e vir do devedor, uma vez que, antes de efetivamente aplicadas, serão verificadas e esgotadas todas as vias menos danosas ao executado. Significa dizer: as medidas constritivas atípicas têm apenas o condão de garantir a eficácia do adimplemento de determinada dívida ou obrigação. Quanto à suspensão de CNH ou passaporte, haja vista se tratar de documentos essenciais para a mobilidade e o acesso a serviços básicos, o inadimplente, ao pensar na possibilidade de tê-los retidos, será incentivado a buscar soluções para resolver suas obrigações financeiras de forma justa e transparente. 

Além disso, conforme anteriormente explanado, como as medidas atípicas só devem ser deferidas se houver no processo sinais de que o devedor possui patrimônio expropriável, os meios alternativos de coerção para satisfação do crédito também impedem que o executado tente burlar a execução, omitindo seus patrimônios ou desviando a finalidade destes. Frisa-se que as modalidades excepcionais de constrição não buscam a punição do inadimplente, mas tão somente a eficácia do cumprimento da obrigação. 

Em conformidade com os argumentos apresentados, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1782418/RJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, decidiu no seguinte sentido:  


“A adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade. (…) De se consignar, por derradeiro, que o STJ tem reconhecido que tanto a medida de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação quanto a de apreensão do passaporte do devedor recalcitrante não estão, em abstrato e de modo geral, obstadas de serem adotadas pelo juiz condutor do processo executivo, devendo, contudo, observar-se o preenchimento dos pressupostos ora assentados.”1

Para além disso, também não há de se argumentar contra a aplicação das medidas executivas atípicas com base puramente em sua intensidade na restrição de direitos fundamentais, uma vez que o próprio sistema jurídico nacional contempla a incidência destas medidas quando presentes os requisitos basilares para a sua concessão. No mesmo plano, os doutrinadores Júlio Camargo de Azevedo e Fernando da Fonseca Gajardoni confirmam: “não se pode falar em inaplicabilidade das medidas executivas atípicas meramente em razão de sua potencial intensidade quanto à restrição de direitos fundamentais. Isso porque o ordenamento jurídico pátrio prevê a incidência de diversas espécies de medidas até mesmo mais gravosas do que essas”.2 

Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal – STF, ao julgar a ADI nº 5941, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, na relatoria do Ministro Luiz Fux, reconheceu a relevância dessas medidas para alcançar a efetividade das decisões judiciais e assegurar que os devedores cumpram suas obrigações perante o sistema jurídico. Confira-se trecho do voto do relator: 

“A interpretação sistemática do ordenamento jurídico-constitucional, em suma, demanda, para a aplicação dessas medidas atípicas, (i) o especial ônus argumentativo do julgador; (ii) o respeito ao devido processo legal e ao contraditório e à ampla defesa – o que não impede, por evidente, a adoção do contraditório diferido quando necessário; e (iii) a apreciação da proporcionalidade, in concreto, da medida imposta.”3

Nesse sentido, caso os recursos tradicionais para garantir o cumprimento de uma execução se mostrem insuficientes, o juízo pode determinar a adoção de medidas executivas atípicas adequadas à situação. Contudo, um aspecto que tem despertado interesse é a duração dessas medidas. 

A respeito desse tema, observa-se que em um caso recente, a 3ª Turma do STJ, no HC 711.194/SP, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, decidiu que as medidas coercitivas atípicas podem e devem perdurar pelo tempo que for necessário para convencer efetivamente o devedor de que é mais vantajoso cumprir a obrigação do que enfrentar restrições como a impossibilidade de viajar ao exterior ou dirigir. Senão vejamos: 

“Nesse particular, é importante salientar que as medidas executivas atípicas, sobretudo as coercitivas, não são penalidades judiciais impostas ao devedor, pois, se assim fossem, implicariam obrigatoriamente em quitação da dívida após o cumprimento da referida pena, o que não ocorre. (…) De fato, essas medidas devem ser deferidas e mantidas enquanto conseguirem operar, sobre o devedor, restrições pessoais capazes de incomodar e suficientes para tirá-lo da zona de conforto, especialmente no que se refere aos seus deleites, aos seus banquetes, aos seus prazeres e aos seus luxos, todos bancados pelos credores. (…)É correto afirmar que não há uma fórmula mágica e nem deve haver um tempo pré-estabelecido fixamente para a duração de uma medida coercitiva, que deve perdurar, pois, pelo tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor, de modo a efetivamente convencê-lo de que é mais vantajoso adimplir a obrigação do que, por exemplo, não poder realizar viagens internacionais. (…) Com todo o respeito, é absolutamente intolerável esse tipo de postura do devedor, que maximiza os seus próprios problemas e necessidades e minimiza, sem nenhum conhecimento ou autorização, os problemas e necessidades do credor, pretendendo, às expensas desse, manter íntegros os seus padrões de vida e os seus hábitos.4

Assim sendo, os devedores não podem se aproveitar de sua própria inadimplência, de forma a justificar a manutenção das medidas atípicas pelo tempo necessário para persuadi-los a saldar suas dívidas.  

Diante do cenário complexo da inadimplência, caracterizado por desafios persistentes enfrentados por credores e instituições financeiras em todo o mundo, torna-se evidente a necessidade de soluções inovadoras e adaptáveis ao contexto jurídico atual. Nesse cenário, as medidas constritivas atípicas despontam como uma resposta promissora, proporcionando uma abordagem moderna e complementar para lidar com as dificuldades inerentes à execução de obrigações judiciais. 

De acordo com os argumentos supracitados, conclui-se que as medidas constritivas atípicas representam um instrumento importante na busca pela efetividade e emergem como uma solução atual para os desafios da execução de obrigações judiciais, oferecendo uma alternativa moderna e subsidiária diante da inadimplência. Reconhecida pela jurisprudência brasileira, sua aplicação adequada, embasada em critérios jurídicos sólidos e respeito aos direitos das partes, é crucial para promover um equilíbrio justo e eficiente nas relações jurídicas, contribuindo para a efetividade do processo executivo e para a manutenção da ordem jurídica. 

  1. STJ; Dj 26 abr 2019; Resp 1782418/RJ; Rel. Ministra Nancy Andrighi.   ↩︎
  2. AZEVEDO, Júlio Camargo de e GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Um novo capítulo na história das medidas executivas atípicas. Jota. São Paulo: Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/novo-cpc/um-novo-capitulo-na-historia-das-medidas-executivas-atipicas-11062018. Acesso em: 28 abr. 2024.  ↩︎
  3. STF; Dj 15 mai 2023; ADI 5941; Rel. Ministro Luiz Fux.  ↩︎
  4. STJ; DJ 21 jun 2022; HC 711.194/SP; Rel. Ministra Nancy Andrighi.  ↩︎
Medidas constritivas atípicas no âmbito da inadimplência do devedor: limites constitucionais do direito de ir e vir