Estação Botafogo-Coca Cola, receitas não-tarifárias e concessões de transporte público no Brasil
O primeiro dia de 2021 foi marcado por uma novidade inusitada para a população carioca: a estação Botafogo, uma das mais movimentadas do sistema de metrô da cidade, havia ganhado o sobrenome da marca de bebidas mais famosa do mundo. Embora não seja pioneira nem mesmo no Rio de Janeiro, a iniciativa despertou dúvidas, curiosidade e a surpresa de muitos – resultando inclusive em inúmeros memes nas redes sociais sobre o assunto. A reação da sociedade é sintomática quanto ao profundo déficit de exploração de atividades acessórias e associadas junto a equipamentos de infraestrutura pública, o que se revela na irrelevância das receitas não-tarifárias na equação de remuneração dos concessionários no país.
Não é segredo que o financiamento de sistemas de transportes eficientes voltados a uma população crescente e com demandas cada vez mais sofisticadas representa um dos principais desafios enfrentados pelo Estado brasileiro. A incapacidade do Governo Federal e dos entes subnacionais de investir em desenvolvimento e manutenção da infraestrutura de transportes já era uma realidade persistente ao longo da última década e agravou-se profundamente em razão dos gastos extraordinários para o combate à pandemia de COVID-19. A decisão recente do Presidente da República de vetar o pacote de subsídios no valor de R$ 4 bilhões para o transporte público em municípios com mais de 200 mil habitantes ilustra bem o ponto: mesmo em um contexto de brusca queda de receita e potencial quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, o Estado brasileiro não tem condições de financiar o sistema.
Não bastasse isso, a habilidade do país de atrair investimentos privados de grande vulto no setor reduziu-se significativamente, como consequência da instabilidade macroeconômica e da falta de segurança jurídica. Há anos, portanto, o cenário é não apenas de marcha lenta na expansão, mas de deterioração dos sistemas de transporte das principais metrópoles brasileiras.
Já vislumbrando esse cenário, de forma inteligente, a Lei Geral de Concessões previu, há 25 anos, uma fonte alternativa de recursos para financiar a infraestrutura pública no país, nos casos em que há delegação da prestação do serviço a um ente privado. Trata-se da possibilidade de exploração de atividades alheias ao serviço concedido, mas que estejam de alguma forma relacionados ao aproveitamento do equipamento público, com o objetivo de gerar receitas para além da cobrança de tarifa aos usuários – prevista expressamente no art. 11 da lei, em seu capítulo sobre política tarifária.
Como se nota, é certo que o legislador optou por franquear um espaço para o dinamismo do setor privado, no intuito de complementar as fontes de ingressos e garantir a rentabilidade do empreendimento. As atividades nesse sentido vão desde exemplos mais óbvios, como o aluguel de espaços e envelopamento de veículos, até a realização de empreendimentos imobiliários e a prestação de consultorias externas pelas concessionárias.
O efeito natural desse arranjo é a desoneração do usuário, que pode se beneficiar com tarifas mais baixas sem prejuízo da sustentabilidade econômica do serviço público e da atividade do particular. Não por outra razão, o diploma é taxativo ao estabelecer que eventuais receitas acessórias serão computadas na equação financeira do contrato e deverão favorecer a modicidade tarifária.
Apesar da permissão legal, a exploração dessas atividades ainda deixa muito a desejar no âmbito dos contratos de concessão de transportes no país, como resultado essencialmente (i) da falta de conhecimento do potencial econômico inerente à infraestrutura pública para além da prestação do serviço de titularidade estatal – problema compartilhado entre Poder Concedente e concessionárias; e (ii) da fragilidade do arcabouço normativo – regulamentar e contratual – incidente sobre o tema, que gera desincentivos e insegurança jurídica1. De acordo com dados da União Internacional dos Transportes Públicos (UITP), fontes secundárias geram o equivalente a apenas 5% dos custos de operação dos sistemas no Brasil, enquanto a estimativa é que o potencial arrecadatório alcance ao menos 25% desse montante2.
Note-se que o aproveitamento ótimo desses instrumentos de exploração de receitas não é um mero exercício teórico: em Santiago, no Chile, o sistema metroviário local tem 20% de suas receitas oriundas de atividades acessórias e a concessionária local possui uma gerência de negócios exclusiva para planejar e coordenar essa linha de atuação empresarial3. Já em países como Alemanha e Japão, com uma extensa malha ferroviária, o aproveitamento não-tarifário supera os 30% dos ingressos totais no setor4. Os dados revelam, portanto, que as receitas extraordinárias podem constituir uma fonte importante de financiamento de sistemas de transporte público urbano, de maneira a diminuir a dependência do erário público e a amenizar os impactos de flutuações de demanda, como a que se verificou no ano passado – segundo dados do MetrôRio, o número de usuários chegou a cair 87% durante o período de maior isolamento social.
Ao que tudo indica, a iniciativa da concessionária carioca representa um passo fundamental para o desenvolvimento de projetos associados à infraestrutura pública, capazes de monetizar o empreendimento e contribuir para a viabilidade econômica do serviço. A negociação de naming rights, mesmo que rara no contexto nacional, é uma das oportunidades negociais mais aproveitadas por prestadoras de serviço público em outros países e geralmente vem acompanhada de outras ações comerciais, também voltadas ao incremento de receitas para ambas as partes envolvidas – cujo objetivo comum é aproveitar um espaço de grande circulação de pessoas como meio de dinamização econômica. Outros modais de transporte, como os aeroportos, já possuem uma prática muito mais avançada em exploração da infraestrutura pública para fins de arrecadação de receita não-tarifária.
Espera-se, assim, que as boas práticas contratuais e a expertise negocial desenvolvidas nessas iniciativas sirvam para ampliar a sua adoção em outras concessões de transporte público pelo país. Não há dúvidas de que as receitas acessórias representam a grande janela de oportunidade para a superação das dificuldades de financiamento e de queda de número de usuários enfrentadas pelos principais sistemas metropolitanos brasileiros. Para além de pleitear um eventual resgate pelo Poder Público, cabe às concessionárias, às agências reguladoras e aos Poderes Concedentes locais avançar nessa agenda, promovendo os ajustes regulatórios e contratuais necessários para que a sustentabilidade da operação e a modicidade das tarifas sejam privilegiadas em um cenário tão adverso.