Elemento da subordinação e a ACP da Uber: como o desprezo do essencial pode afetar uma decisão
Por Luis Fernando de Oliveira Costa e Eduarda Chacon.
Recentemente, tivemos uma polêmica sentença no âmbito de uma Ação Civil Pública, proferida pelo Juízo do TRF-2, mais precisamente, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, que reconheceu a existência de vínculo empregatício entre a Uber e os motoristas de aplicativo cadastrados na plataforma.
O que causou surpresa na decisão não foi apenas o reconhecimento do vínculo (que já fora debatido em outras ações, possuindo tanto julgados que acolheram o entendimento de relação empregatícia, quanto julgados que o afastaram)1, mas sim a vultuosa multa arbitrada e a condenação para que a Uber faça o registro na CPTS digital de todos os motoristas cadastrados no aplicativo no prazo de 6 meses.
De modo a balizar esta condenação, tanto o Juízo deste caso, quanto os julgados que trataram da matéria anteriormente, debruçaram-se de maneira especial sobre o requisito da subordinação, tanto para afastar, quanto para reconhecer o vínculo empregatício. Dessa maneira, no caso em comento, o Juízo entendeu pela presença do vínculo, com esteio nos seguintes elementos2:
i) a Ré decide quem pode dirigir ou não por intermédio de sua plataforma; ii) a Ré impõe as regras para trabalhar dirigindo por intermédio da plataforma; iii) a Ré controla em tempo integral as atividades dos motoristas; iv) a Ré conhece tudo, e de forma ampla e irrestrita, o que é feito pelo motorista, como e quando é feito, individualmente em relação a cada motorista; v) a Ré tem amplo poder fiscalizatório da atividade dos motoristas, diretamente pela plataforma; vi) a Ré tem poder de punir de forma média, com restrição de chamadas, bloqueios unilaterais temporários e de forma máxima, extrema, mediante bloqueio definitivo. (fls. 69)
Tais critérios incorreriam, na visão do Juízo, como pontos aptos a indicar tanto uma subordinação estrutural, quanto uma subordinação algorítmica dos motoristas de aplicativo. Porém, a decisão parece equivocada, data vênia, na medida em que deixa de apreciar elementos mais simples e que são utilizados, hodiernamente, para aferir a existência ou não do vínculo.
No que tange à jornada de trabalho, por exemplo, sabe-se que o motorista tem a faculdade de recusar corridas, aceitar corridas, fazer uso do aplicativo ou interrompê-lo em quaisquer horários ou simplesmente não trabalhar, sem sujeitar-se a qualquer ônus por isso.
Ora, se o motorista não precisa cumprir horários fixos, não é obrigado a aceitar corridas a destinos que não deseja, não necessita sequer trabalhar em dias pré-determinados, difícil reconhecer a presença de vínculo empregatício diante de tantos elementos que demonstram a ausência de subordinação.
A esse respeito, pesquisa recente3 indicou que os motoristas de aplicativo cumprem, em média, uma jornada semanal que varia entre 22 e 31 horas, com 4,2 dias trabalhados por semana, o que evidencia que a Uber não tem qualquer ingerência sobre o tempo do motorista.
Outro ponto que causa espanto na referida decisão é que o Juízo entende que o algoritmo do aplicativo é capaz de, per se, fazer todo o micro gerenciamento dos motoristas. No entanto, na prática, sem as avaliações concedidas pelos passageiros, o algoritmo seria incapaz de atuar. Outrossim, também é ignorado o fato de que o motorista tem a prerrogativa de avaliar seus passageiros, o que implicaria na presença de todos os elementos elencados pelo Juízo também ao passageiro.
Como se vê, a função do algoritmo não é a de monitorar o motorista, controlar sua jornada de trabalho ou puni-lo em caso de má conduta, mas sim, a de tão somente permitir que motoristas e passageiros se conectem e se avaliem reciprocamente.
O algoritmo, embora tenha sido projetado pela Uber, não é guiado por ela, mas sim pelos usuários. Todo o controle é exercido por quem faz uso do aplicativo, assim como ocorre em quaisquer outras plataformas com mecanismos semelhantes, como a Netflix, por exemplo. Não é a Netflix quem escolhe a seleção de filmes que vão aparecer prioritariamente para o usuário, mas sim o próprio usuário, que na medida utiliza a plataforma, indica para o algoritmo quais são suas preferências pessoais, de modo a fazer com que o algoritmo se molde a elas.
Esses elementos, que seriam suficientes para reconhecer a ausência de vínculo trabalhista, se perderam em meio a diversas considerações acerca do funcionamento do algoritmo e em meio a argumentos que já foram desconsiderados pelas cortes superiores. Na referida decisão, o Juízo alega, de modo a afastar essas considerações, que as cortes superiores não haviam se debruçado sobre um conjunto probatório tão grande. No entanto, como é possível verificar, este acervo probatório foi incapaz de afastar elementos simples, como os acima elencados, que são providenciais para uma correta análise do caso.
Como é de esperar, as instâncias superiores ao analisarem a matéria, muito provavelmente confirmarão as decisões anteriores dispuseram pela inexistência de vínculo. De todo modo, é cabível o alerta de que a busca pela justiça não pode nos levar a negligenciar o que já fora fixado pela jurisprudência, do contrário, esta não seria necessária ou mesmo útil.
1 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR – 100353-02.2017.5.01.0066. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. PROCESSO Nº TST-AIRR-10575-88.2019.5.03.0003
2 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 2ª Região (4ª Vara Federal). Ação Civil Pública 1001379-33.2021.5.02.0004. São Paulo, 14 de setembro.
3 CEBRAP. Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos. Brasil. 2023. Disponível em: https://amobitec.org/wp-content/uploads/2023/04/Pesquisa-Cebrap_Amobitec_Pocket-Report-_final.pdf. Acessado em: 15/10/2023.