Desculpe o transtorno, estamos em revolução
Por Manoela Barata
Seria redundante dizer que o constitucionalismo digital é um conceito em construção. Redundante e paradoxal. Redundante porque o mundo digital é um estado permanente de emergência e de devir, sempre em movimento, ininterruptamente. Em um fluxo constante de revelação, revolução e transformação. Ou seja, no exato instante em que o constitucionalismo digital abandonar este processo de autoconstrução já terá se tornado obsoleto.
Por outro lado, é paradoxal pensar que se pode construir em bases sólidas qualquer solução normativa nessa conjuntura de intensa desconstrução que vivenciamos. É isso que inspira a Teoria de Bauman a substituir o conceito de pós-modernidade pelo conceito de modernidade líquida. Porque já não há mais nada de sólido (e nem de concreto) em que possamos nos agarrar.
Nessa conjuntura, será que existe um lugar qualquer, entre a utopia e a distopia, onde realmente caiba se falar na construção do constitucionalismo digital? Ou o anseio do Direito de regular o ciberespaço é um tanto quanto quixotesco? Metaforicamente, toda essa corrida de regulação digital seria, talvez, uma forma que a lógica jurídica tradicional achou para morrer lentamente (e estrebuchando)?
Para que o constitucionalismo digital se consolide – e se realize – na posição e na proporção que se pretende, da base sólida sobre a qual tudo pode mudar, é preciso que não percamos de vista a quem ele serve e quais os valores que compõem esse amálgama.
É preciso, pois, que não sejam deixados de lado os direitos e liberdade fundamentais, a governança e a participação civil na internet, os direitos de privacidade e autodeterminação, a educação digital para a manutenção de um ambiente virtual democrático, a democratização do próprio acesso, a abertura e a estabilidade na rede e, até mesmo, a necessidade de estabelecer de limites ao poder público.
Já há muito se fala na quinta dimensão dos direitos fundamentais, na quinta revolução industrial, na sociedade de dados, sociedade da informação e até mesmo na sociedade das plataformas. E é natural, nesse contexto, que os dados e as tecnologias digitais sejam colocados no epicentro normativo.
Mas para efetivamente atender às reinvindicações sociais, os debates regulatórios e acadêmicos precisam se dinamizar e democratizar, tornando-se capazes de oferecer soluções atuais e usuais. E, na medida do possível, supraterritoriais.
Não se ignora as nuances, particularidades e as dificuldades inerentes à governança e regulação do ambiente digital. Mas assim como foi possível, a partir da expansão da internet para o uso civil, a mundialização das interações e a disseminação global das formas virtuais de interação social (a ponto de hoje já não se pensar mais o mundo sem as redes sociais), e testemunhamos até mesmo o surgimento de formas de organização econômica em rede (com o nível de sofisticação de um Protocolo Blockchain, por exemplo), é factível esperar que em algum momento emerja também um novo paradigma de regulação digital.
É nesse contexto, de debate urgente e emergente sobre a regulação digital, e de reavaliação da matriz regulatória cabível nesse ambiente tão complexo, que a ideia do constitucionalismo digital ganha especial relevância.
Vários autores, à exemplo de Edoardo Celeste, têm situado a internet – ou melhor, as novas tecnologias da informação e comunicação – como um importante agente catalisador de um constitucionalismo global multinível, capaz de superar em definitivo uma tradição de Constituição e Estado concêntricos intrinsicamente ligada à ideia de concentração e reserva de poder.
O constitucionalismo digital é, pois, uma (r)evolução. Na medida em que coloca a proteção da pessoa humana no norte da bússola e marcha para superar tanto as estruturas de poder tradicionais quanto as arquiteturas de redes que, isoladamente, jamais seriam capazes de avançar sobre esse vácuo normativo ultraespecífico e supraestatal que é o ambiente digital. É preciso que estejamos preparados.