Da Relevância da Questão Jurídica Objeto do Recurso Especial – Do Novo Pressuposto de Admissibilidade Introduzido pela Emenda Constitucional 125/2022
Konstantinos Jean Andreopoulos (Dino)
Camila Medim Abreu França
Carolina Nunes Whitaker Penteado
Em 14/7/2022, foi promulgada a Emenda Constitucional 125, que promoveu alterações no artigo 105, da Constituição Federal, notadamente na parte que dispõe sobre o recurso especial, a fim de introduzir os parágrafos 2º e 3º, com as seguintes redações:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
[…]
III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal;
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
[…]
§ 2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.
§ 3º Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos:
I – ações penais;
II – ações de improbidade administrativa;
III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos;
IV – ações que possam gerar inelegibilidade;
V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça;
VI – outras hipóteses previstas em lei.
A EC 125/2022 entrou em vigência na data da sua publicação, ocorrida em 15/7/2022, de modo que, numa primeira análise, pode se concluir que a demonstração da relevância da questão jurídica, objeto do recurso especial, passa a ser exigida em todos os recursos interpostos após a referida data.
Todavia, respeitados processualistas entendem que a eficácia das alterações promovidas pela EC 125/2022 ainda depende da promulgação de lei federal regulamentadora. Tal entendimento encontra guarida na leitura das alterações promovidas no texto constitucional, pois, enquanto o §2º deixa para a lei ordinária a definição dos requisitos formais da demonstração da relevância, o inciso VI, do §3º, reserva ao legislador ordinário a definição de outras hipóteses de relevância. Na visão desses processualistas, o STJ não poderia reconhecer a ausência de relevância sem que a lei federal defina, ao menos, em quais discussões a relevância é previamente reconhecida.
Embora entendamos que, até por razões lógicas, não se possa admitir decisão acerca da não existência de relevância sobre alguma matéria, antes mesmo da definição, por lei ordinária, das demais hipóteses em que tal requisito deve ser reconhecido, parece-nos ser dever do jurisdicionado demonstrar a relevância da matéria veiculada nos recursos especiais interpostos desde a entrada em vigor da EC 125/2022.
Como não há forma definida no texto constitucional, em nossa visão a demonstração da relevância da tese em debate deve ser feita previamente ao mérito, no capítulo destinado ao cumprimento dos demais requisitos autorizadores da interposição do recurso especial, até que a lei ordinária disponha de forma diversa.
O denominado “filtro da relevância”, ao nosso ver, é mais um pressuposto de admissibilidade do recurso especial, cujo objetivo primordial é adequar a atuação do Superior Tribunal de Justiça à função que lhe atribui a CF/88, a partir (i) da restrição da atuação do STJ a temas de direito que transcendem o interesse das partes envolvidas ou a debate sobre interesses individuais relevantes, seja em razão da matéria, repercussão ou valor envolvido, (ii) da redução no volume de recursos que aportam diariamente no tribunal e, consequentemente, (iii) do foco e maior agilidade na solução de demandas que justifiquem a atuação da Corte Superior.
Trata-se, por analogia, de requisito similar ao da repercussão geral para os recursos extraordinários (art. 102, §3º, CF, introduzido na CF/88 pela EC 45/2004).
O efeito indireto das alterações promovidas pela EC 125/2022 é a reafirmação da importância e da responsabilidade dos tribunais ordinários na apreciação da causa e, consequentemente, da necessidade de se aprimorar a atuação das partes perante as instâncias ordinárias, de modo que ao STJ sejam reservadas apenas as matérias – de direito – que justifiquem sua atuação, enquanto Corte Superior uniformizadora da interpretação da legislação federal.
Da leitura dos parágrafos §2º e §3º do art. 105, da CF/88, fica claro que o requisito de relevância afeta apenas o recurso especial, não sendo exigido, portanto, às hipóteses previstas nos incisos I e II, do referido dispositivo.
Feitas essas considerações gerais, passemos à análise do que diz cada um dos parágrafos acrescidos ao art. 105, CF. A teor do novel §2º, o não conhecimento do recurso especial, por ausência de relevância, dependerá da manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para julgamento. O que se extrai do referido dispositivo é que, admitido o recurso especial, via de regra ele será distribuído para a relatoria de uma das Turmas do STJ, sabidamente composta por 5 ministros. Assim, e aplicando a regra de arredondamento para cima, tem-se que, se 4 ministros de determinada Turma votarem pela ausência de relevância sobre determinado tema, o recurso especial não será conhecido.
Contudo, a lei processual e o próprio RISTJ preveem hipóteses em que a competência para o julgamento de recursos especiais deve ser transferida para as Seções ou para a Corte Especial (por exemplo, IAC e os recursos especiais afetados para o rito dos recursos repetitivos). Nessas hipóteses, e partindo da premissa necessária de que já houve o reconhecimento de relevância pela Turma, entendemos que a lei não impede – pelo contrário, exige – que a existência ou não da relevância seja reapreciada pelo novo órgão julgador.
Assim, e considerando o teor do §2º do art. 105, CF, se o julgamento competir à Seção, o não conhecimento do recurso, por ausência e relevância, dependerá do voto de 7 ministros, ao passo que, na Corte Especial, de 10 ministros.
Cabe aqui, todavia, importante ressalva: se o recurso especial não trouxer tópico específico sobre a relevância da matéria, ou, se deixar de atender a outros requisitos de admissibilidade, seu seguimento poderá ser obstado por decisão isolada do relator do recurso.
Outra controvérsia que está gerando inúmeros debates entre processualistas diz respeito às consequências do reconhecimento de ausência de relevância pelo STJ, sobre determinado tema, notadamente perante o juízo de admissibilidade de recursos especiais de idêntica matéria e que será exercido pelos tribunais locais.
Ao nosso ver, em que pese a lacuna do texto constitucional, a consequência a ser definida pela lei ordinária ou mesmo pela jurisprudência do STJ será idêntica ao que hoje ocorre com as decisões que negam a existência de repercussão geral: os recursos não serão conhecidos e contra essa decisão caberá apenas agravo interno endereçado ao próprio tribunal de origem (cf. art. 1030, I, a, CPC). Assim, recursos especiais que abordem matéria que já teve a relevância negada pelo STJ, na forma estabelecida pelo §2º, do art. 105, CF, não serão conhecidos por decisão monocrática de Presidentes/Vice-Presidentes dos tribunais de origem, decisão essa que, pensamos, somente poderá ser questionada por meio de agravo interno no qual se deverá demonstrar o distinguishing em relação ao tema cuja ausência de relevância já foi declarada pelo STJ.
O §3º do art. 105, CF, elenca as matérias cuja relevância é previamente reconhecida:
I – ações penais;
II – ações de improbidade administrativa;
III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos;
IV – ações que possam gerar inelegibilidade;
V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça;
VI – outras hipóteses previstas em lei.
Nos dedicaremos aqui a comentar as hipóteses previstas nos incisos III e V, as quais já estão sendo objeto de inúmeras discussões.
A introdução do valor da causa, como critério de reconhecimento automático de relevância (artigo 105, §3º, III), já é alvo de inúmeras críticas da comunidade jurídica. A primeira delas diz respeito à reconhecida inidoneidade do valor da causa como demonstrativo fiel do valor envolvido na discussão judicial. E nem sempre essa “infidelidade” pode ser atribuída às partes, pois a prática revela inúmeras situações em que o valor econômico em debate não pode ser previamente calculado ou mesmo estimado. Por outro lado, há inúmeras questões relevantes que não envolvem valor econômico (ações de estado, declaratórias, ações envolvendo direito de família, entre outras) ou envolvem valores inexpressivos, quando isoladamente considerados, porém com inegável caráter multitudinário (ex. tarifas bancárias, assunto que já foi objeto de 4 recursos repetitivos).
O inconformismo dos processualistas com a adoção valor da causa, como critério de aferição automática de relevância, vai além: embora o valor de 500 salários mínimos seja relevante para grande parcela da população, certamente não o é para disputas envolvendo partes de grande poderio econômico, o que retira desse critério o elemento de uniformidade.
Por fim, já há dúvidas sobre qual será o entendimento do STJ na hipótese em que o valor da causa for insignificantemente menor do que o limite previsto constitucionalmente. Haverá mitigação? Só o tempo – e o STJ – dirá!
Em que pese as críticas já existentes, o critério está fixado e exigirá, por parte dos operadores do Direito, maior atenção quanto à sua definição, pelo demandante, ou impugnação, pelo demandado. Como consequência, os litigantes devem definir e atualizar constantemente o valor da causa, a fim de que se viabilize o acesso ao STJ, ao menos quanto a esse critério. Por outro lado, “inflar” artificialmente o valor da causa, objetivando o futuro e eventual acesso ao STJ, passou a ser fator de risco após a vigência do novo CPC, que trouxe novos critérios para a fixação dos honorários de sucumbência. Em julgamento recente, o STJ pacificou, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1076), o entendimento de que a fixação dos honorários por apreciação equitativa não é mais permitida quando os valores da condenação, da causa ou do proveito econômico da demanda forem elevados. Nesses casos, é obrigatória a observância dos percentuais previstos nos §§ 2º ou 3º do artigo 85 do CPC, os quais serão subsequentemente calculados sobre: (a) o valor da condenação; ou (b) o proveito econômico obtido; ou (c) o valor atualizado da causa1.
Outra crítica feita à EC 125/2022 diz respeito à utilização da expressão “jurisprudência dominante”, no artigo 105, §3º, V, da CF, cuja definição é abstrata e incerta, visto não estar prevista em lei. Entendemos que tal expressão abarca: (i) teses firmadas em julgamento de recursos repetitivos; (ii) teses fixadas Seções e/ou Corte Especial; (iii) teses objeto de enunciado sumular; (iv) entendimento reiterado e comum às duas Turmas de uma mesma Seção. A demonstração da existência de relevância por esse critério demandará do recorrente que insira nas razões do recurso especial elementos que permitam ao STJ a sua constatação de plano, tais como a indicação dos julgados (de turmas, Seção ou Corte Especial) e/ou do enunciado sumular.
No entanto, não se pode perder de vista que uma das funções do STJ é justamente de uniformizador da interpretação da legislação federal que a própria Lei Maior lhe atribui (cf. art. 105, III, c, CF). Assim, muito além da “jurisprudência dominante”, defendemos que o STJ deverá reconhecer a relevância de matéria sobre a qual ainda não se pronunciou e que é objeto de dissenso entre os tribunais ordinários.
Por fim, quanto ao artigo 105, III, VI, entende-se que a definição das “outras hipóteses”, caracterizadoras da relevância, dependerá também da promulgação de lei específica.
Conclui-se, portanto, que essa temática gerará ainda muitas discussões, tanto do ponto de vista legislativo, quando do ponto de vista jurisprudencial. O que se pode afirmar desde já é que a inovação legislativa aqui comentada já era esperada e é apenas mais uma medida de restrição do acesso aos tribunais superiores. Embora a correta intepretação da CF/88 já fosse suficiente para indicar que o acesso aos tribunais superiores era restrito a questões exclusivamente de direito, a cultura litigiosa de nossa sociedade permitiu que tanto o STJ como o STF recebessem, mensalmente, milhares de recursos novos, com altos índices de não conhecimento e não provimento.
Em maio de 2022, o STJ recebeu o REsp nº 2.000.000, ao passo que o AREsp nº 2.000.000 foi autuado em outubro de 2021. Não se tem notícia de que outro tribunal superior no mundo tenha um volume parecido de recursos, o que justificou não apenas a criação da chamada jurisprudência defensiva, como a constante edição de leis processuais tendentes a restringir o acesso às cortes superiores.
Em suma, as alterações aqui comentadas apenas reforçam a conduta que o BFBM defende perante clientes e tribunais há anos: o bom desate das questões litigiosas exige atuação atenta e estratégica nas instâncias ordinárias, visto que a atuação nos tribunais superiores é excepcional e reservada a questões relevantes.