Cabimento do ANPC na Justiça Eleitoral nos casos de condutas vedadas que configurem atos de improbidade administrativa

Por Izabella Ribeiro Xavier

Nos artigos anteriores desta trilogia, abordamos aspectos gerais sobre a consensualidade no direito eleitoral e sobre a normatividade específica da Lei das Eleições no tocante à lógica dos consensos na seara eleitoral. Doravante, faremos uma breve análise acerca do ANPC, típico instrumento de soluções consensuais que é, na esfera eleitoral.

Com efeito, o acordo de não persecução cível foi positivado na legislação brasileira com o advento da Lei nº 14.230/2021, que incluiu o art. 17-B à Lei de Improbidade Administrativa. Anteriormente, o acordo era previsto apenas no âmbito infralegal do Ministério Público (Resolução/CNMP nº 179/2017), mas a própria Lei de Improbidade vedava a realização de acordo, transação ou conciliação nas respectivas ações (antigo art. 17, §1º, da Lei). A inclusão legislativa, portanto, demonstra a evolução do legislador ao acolher o princípio da consensualidade no âmbito das ações de improbidade – tradicionalmente considerado indisponível de modo absoluto[1] –, devendo o referido instrumento ser utilizado de acordo com as premissas legais agora fixadas.

De modo específico, reputa-se adequado o tratamento do ANPC dentro da temática relativa às condutas eleitorais vedadas em razão da norma de conexão existente no art. 73, §1º, da Lei nº 9.504/1997, cuja redação dispõe que “as condutas enumeradas no caput caracterizam, ainda, atos de improbidade administrativa, a que se refere o art. 11, inciso I, da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, e sujeitam-se às disposições daquele diploma legal, em especial às cominações do art. 12, inciso III”.

Dessa forma, como as condutas proibidas pela legislação eleitoral também podem ser consideradas atos de improbidade administrativa, é importante refletir sobre quais seriam os delineamentos específicos do referido acordo de não persecução no âmbito eleitoral.

Quanto ao ponto, faz-se necessário mero disclaimer: mesmo que o inciso I do art. 11 da Lei de Improbidade tenha sido revogado pela Lei nº 14.230/2021, é tranquilo o entendimento de que essa revogação não impede o enquadramento das condutas vedadas pelo art. 73, da Lei das Eleições, em algum dos tipos descritos na LIA[2] – com a revogação, ao revés, deixa apenas de existir a vinculação ao tipo do art. 11, I (antiga violação aos princípios da administração público em razão da “prática de ato visando fim proibido ou regulamento diverso daquele previsto, na regra de competência”).

Valendo-se dos ensinamentos de Igor Pereira Pinheiro, que entende pelo pleno cabimento do acordo na seara eleitoral, é preciso fazer determinadas ressalvas quanto às suas cláusulas. Preliminarmente, é certo que, como o acordo decorre de lei ordinária, ele não é possível em circunstâncias em que exista sentença com a inelegibilidade enquanto sanção, considerando a exigência constitucional de lei complementar (art. 14, § 9º, CF/88) para instituir e, por corolário, excluir inelegibilidades. O entendimento estaria alinhado com proposta de regulamentação da matéria pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que busca regular o tema[3]. Por decorrência do mesmo entendimento, não poderia o Ministério Público ser criativo no acordo e estabelecer uma sanção negocial de inelegibilidade para uma hipótese não tachada como tal na lei complementar ou na Constituição Federal.

Contudo, seria possível cogitar que, no momento pré-sentencial, o eventual acordo versasse sobre a não aposição de uma possível e futura sanção de inelegibilidade, já que, nesse caso, ainda não haveria a sentença condenatória, mas a mera expectativa de subsunção do virtual fato à norma, na medida em que esse possível benefício poderia ser um dos grandes atrativos para a celebração do acordo.

Nesse sentido, o autor ensina que, na Justiça Eleitoral, o acordo não seria cabível nas seguintes hipóteses: (i) quando houver uma ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), em que se impute aos candidatos participação direta nos abusos denunciados – alusão ao art. 22, XIV, da LC 64/90; (ii) nas ações eleitorais em que os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional forem acusados de beneficiar a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político (art. 1º, I, j, da LC 64/90); (iii) nas ações eleitorais cíveis que envolvam corrupção eleitoral, captação ilícita de sufrágio, doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais, o que geraria a inelegibilidade do art. 1º, I, j, da LC 64/90; e (iv) nos casos de impedimentos subjetivos (reincidência em ilícitos eleitorais/prática reiterada/acordo anterior nos 5 anos anteriores)[4].

Como se vê, o mencionado autor exclui o cabimento do ANPC para hipóteses eleitorais em que reputou como “graves” – e, embora tenha se tratado de recorte pessoal do autor, inclusive enquanto membro do Ministério Público, as circunstâncias em geral parecem razoáveis –, mas acaba por incluir o caso de conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais. A despeito disso, e considerando a norma já introduzida, disposta no § 7º do art. 73, da Lei das Eleições, que prevê a caracterização de referidas condutas vedadas também como atos de improbidade administrativa, não parece haver dúvida de que o acordo seria, sim, possível nesses casos, consideradas (a) a independência das instâncias sancionatórias e (b) a necessidade de leitura sistemática das normas – Lei das Eleições e LIA.

Nesse sentido, ainda que se trate de conduta tendente a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais – a ter suas devidas implicações na vida eleitoral deste candidato –, e considerando a caracterização dessa mesma conduta como ato de improbidade administrativa, o ato em si deve ser investigado para além da instância eleitoral, com a incidência da Lei de Improbidade em sua íntegra – em processo de natureza civil-administrativa –, inclusive no que diz respeito à possibilidade de ser firmar o acordo de não persecução cível.

Para além dessa discordância, e aproveitando o contexto da consensualidade, filia-se ao entendimento do referido autor quanto ao pleno cabimento do termo de ajustamento de conduta (TAC) na área eleitoral, devendo-se igualmente se fazer algumas ressalvas quanto às suas cláusulas: (i) celebração exclusiva do termo pelo Ministério Público Eleitoral com partidos, coligações e candidatos, na forma do art. 5º, §6º, da Lei nº 7.347/85; (ii) ajuste celebrado de maneira livre e espontânea, vedada a participação do Poder Judiciário nas negociações, que deve se limitar à fase de homologação; (iii) termo que não pode estabelecer normas contra legem, embora possam ser ajustadas condições abaixo das máximas estabelecidas por lei; e (iv) destinação vinculada ao Fundo Partidário, na forma do art. 38, l, da Lei nº 9.096/95, no caso de cláusula com penalidade pecuniária pelo descumprimento[5].

Vê-se, portanto, que tanto o ANPC como o termo de ajustamento de conduta – previsto na LACP, o que atraiu a discussão anterior acerca da interpretação do TSE acerca do art. 105-A, da Lei das Eleições –, ambos concretizadores do princípio da consensualidade, são perfeitamente cabíveis na seara eleitoral, bastando que se proceda às adequações necessárias, a depender das circunstâncias concretas.

À guisa de finalização, tem-se que, a partir das reflexões apresentadas, sete são as conclusões da presente tríade de artigos. A primeira delas é a de que a lógica da consensualidade é decorrência direta do princípio constitucional da eficiência e do atual estágio do Estado Democrático de Direito – pautado sobretudo na ausência de indisponibilidade absoluta do interesse público –, devendo ser aplicada ao processo jurisdicional eleitoral como forma de otimização dos recursos existentes. Nessa toada, registra-se o entendimento, em ascensão na doutrina, de que a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 26, introduzido pela Lei nº 13.655/2018, representa efetivo permissivo genérico para que a Administração celebre acordos, não nos parecendo haver óbice para a transposição desse entendimento ao Direito Eleitoral[6].

A segunda delas é a de que devem ser aplicadas as disposições (i) do Código de Processo Civil acerca da necessidade de aplicação supletiva de suas normas ao processo eleitoral, e (ii) da LIA acerca do ANPC, devendo-se ser superada a Resolução/TSE nº 23.478/2016 quanto à inaplicabilidade da autocomposição e dos negócios jurídicos processuais no âmbito da Justiça Eleitoral. Quanto ao ponto (ii), defende-se a tese que os próprios critérios hierárquico e cronológico para solução de antinomias jurídicas são aplicáveis à celeuma, considerando que a LIA é lei ordinária e, portanto, hierarquicamente superior à Resolução do TSE, além de ser mais recente.

E, para o caso específico do recorte ora tratado, ainda se poderia lançar mão mesmo do critério da especialidade, já que se trata de discussão afeta à sobreposição parcial entre o Direito Eleitoral e a improbidade administrativa, parecendo ser o caso de aplicação desta norma, especial, em vez daquela, geral.

Assim, não parece razoável a alegação de que a Resolução do TSE impediria o consensualismo eleitoral no recorte ora tratado, visto que tal acepção ignora a interpretação sistemática do ordenamento jurídico.

A terceira delas é a de que não deve mais subsistir o fundamento relacionado à absoluta indisponibilidade dos direitos tutelados pelo Direito Eleitoral como fundamento para se proibir a realização de acordos nessa seara, inclusive em consonância com os demais ramos do Direito e com a positivação de diversos outros instrumentos premiais no ordenamento jurídico.

A quarta delas é a de que, a despeito das disposições da Resolução/TSE nº 23.478/2016, o TSE atualmente já demonstrou a capacidade de evolução de sua jurisprudência ao ter permitido a homologação de negócio jurídico processual em processo de prestação de contas, o que indicou o aceno da Corte à necessidade de acolhimento de instrumentos consensuais.

A quinta delas é afeta à necessidade de se declarar, em sede de controle concentrado, a inconstitucionalidade do art. 105-A da Lei das Eleições, considerando sua incompatibilidade com a função constitucional do Ministério Público, bem como o fato de que vem sendo indevidamente utilizado pela Corte Superior como fundamento para se vedar a realização de termos de ajustamento de conduta. Quanto ao ponto, soma-se a conclusão de que o Tribunal não tem mostrado uniformidade em sua jurisprudência quanto à interpretação do artigo, considerando a permissão dada à instauração de inquéritos civis públicos eleitorais – o que, em rigor, também estaria incluído na exclusão de aplicabilidade do referido dispositivo.

A sexta delas é a de que, conforme se defendeu, a litigiosidade não é o mecanismo mais eficaz para a solução de todos os casos, devendo-se reservar o litígio para circunstâncias graves e específicas no contexto eleitoral.

Por fim, e em sétimo lugar, e em razão da possibilidade de determinadas condutas proibidas pela legislação eleitoral serem também serem consideradas atos de improbidade administrativa, entende-se pela plena possibilidade de se firmar o ANPC nessa hipótese, dada a norma de conexão contida no § 7º do art. 73 da Lei das Eleições, bem como a necessidade de leitura sistemática do ordenamento. Ainda quanto ao acordo de não persecução, e conforme se registrou, torna-se necessária a observância da exigência constitucional prevista no art. 14, § 9°, não sendo o acordo possível em circunstâncias em que exista sentença com a inelegibilidade enquanto sanção, considerando a exigência constitucional de lei complementar para instituir e excluir inelegibilidades.


[1]O texto original da Lei de Improbidade Administrativa, datado de 02 de junho de 1992, vetou expressamente a ‘transação, acordo ou conciliação’ (art. 17, § 1º), o que era sustentado pela suposta violação aos princípios da supremacia do interesse público e indisponibilidade de interesse público. Ocorre que a efetivação do Estado Democrático de Direito, adotado já no Preâmbulo da Constituição de 1988 e reafirmado no seu art. 1º, perpassa pela existência de um espaço público que propicie diálogo livre e construtivo entre governantes e governados, possibilitando a construção de soluções consensuais de conflitos que ultrapassem o modelo tradicional da imperatividade estatal direta, fruto da relativa autoexecutoriedade dos atos administrativos, ou indireta, decorrente da imposição através do Estado-juiz. O óbice proporcionado pela concepção clássica do conceito de interesse público à eclosão da consensualidade, o que reflete na utilização de meios alternativos de conflito de interesses, consiste no entendimento de que a supremacia do interesse público é fator legitimador da existência das prerrogativas públicas, comprometidas em caso de negociações, em virtude da possibilidade da Administração, conceder prevalência ao interesse privado em face do interesse público” (destaques acrescidos). In: Tourinho, Rita. Os acordos de não persecução cível na seara da improbidade administrativa: impactos trazidos pela Lei 14.230/2021. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | vol. 25/2023 | p. 157 – 193 | Abr-Jun/2023. DTR\2023\4124. Pág. 3.

[2] Condutas vedadas aos agentes públicos federais em eleições 2024: com decisões da Comissão de Ética Pública da Presidência da República / Advocacia-Geral da União, Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos da Presidência da República. – 10. ed., rev. e atual. – Brasília: Advocacia-Geral da União, Página 17, 2024.

[3] Proposta de regulamentação do artigo 17, § 1º, da Lei 8.429/1992, disciplinando o acordo de não persecução cível no âmbito do Ministério Público. https://www.cnmp.mp.br/portal/images/noticias/2021/julho/Proposta_de_Resolucao_-_Acordo_de_Nao-Persecucao_Civel.pdf

[4] Pinheiro, Igor Pereira. Reflexos eleitorais na nova lei de improbidade administrativa. São Paulo: Editora Mizuno, 2022. Págs. 112-114.

[5] Op cit, 110-111.

[6] GUERRA, S.; PALMA, J. B. de. Art. 26 da LINDB – Novo regime jurídico de negociação com a Administração Pública. Revista de Direito Administrativo, [S. l.], p. 135–169, 2018. DOI: 10.12660/rda.v0.2018.77653. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/77653. Acesso em: 21 jun. 2024.

Cabimento do ANPC na Justiça Eleitoral nos casos de condutas vedadas que configurem atos de improbidade administrativa