Breves comentários sobre o Tema Repetitivo 1.198 e os desafios do Poder Judiciário frente à litigância predatória

O Superior Tribunal de Justiça promoveu uma audiência pública, na forma dos arts. 1.038 do CPC e 186 do Regimento Interno do STJ, no dia 4 de outubro deste ano para discutir o Tema Repetitivo 1.198.  

O intuito foi debater a controvérsia em torno da possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários. 

Embora a litigância predatória não seja uma novidade no direito brasileiro, a afetação da temática ocorreu somente em maio deste ano, em virtude da interposição do REsp nº 2.021.665/MS, no âmbito do IRDR 16/TJMS, instaurado, por sua vez, em decorrência da grande quantidade de processos abusivos relativos a empréstimos consignados.  

Conforme bem pontuou o Min. Moura Ribeiro, relator do recurso, em sua decisão pela afetação da matéria, “o Centro de Inteligência da Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul (CIJEMS), órgão criado por determinação do CNJ (art. 4º da Resolução nº 349/20, modificada pela Resolução nº 442/22) para apurar, entre outras coisas, a ocorrência de litigância predatória, constatou graves indícios de fraudes processuais naquele Estado.” 

Além disso, “de acordo com a Nota Técnica nº 1/2022, (…) foram ajuizadas 64.037 ações entre janeiro de 2015 e agosto de 2021 versando sobre empréstimos consignados. Desse total, 27.924, ou seja, 43,6%, foram patrocinadas pelo mesmo advogado e, em um universo de 300 processos tomados como amostra, observou-se que em todos, a petição inicial desenvolveu narrativa hipotética, relatando que a parte autora não se recorda se celebrou o empréstimo cuja declaração de inexistência é postulada.” 

Em igual sentido, “em todos os processos analisados, a inicial veio desacompanhada do extrato bancário do período do empréstimo questionado e a procuração ad judicia exibida foi redigida em termos genéricos, isto é, sem indicação da pessoa em face da qual a ação deveria ser proposta ou da pretensão a ser deduzida em juízo. Além disso, em 99% desses casos analisados, foi requerida a dispensa da audiência de conciliação pela parte demandante.” 

E o deslinde dessas ações chama atenção: “observou-se que em 80% delas o pedido foi julgado improcedente com condenação da parte por litigância de má-fé”. 

Curioso notar, ainda, que dentre os 20 maiores litigantes em polo passivo, conforme apuração realizada pelo Conselho Nacional de Justiça1, figuram como protagonistas instituições financeiras. O gráfico abaixo, extraído do site do CNJ, e dividido por segmentos de atividades, ajuda a ilustrar o cenário: 

Interface gráfica do usuário

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Vale a menção ao fato de que, muitas das ações ajuizadas em face às instituições financeiras valem-se da indiscriminada concessão da justiça gratuita – benefício absolutamente legítimo, muitas vezes desvirtuado em nome de uma litigância frívola –; do protecionismo adotado pela lei consumerista; e da inversão (muitas vezes “automática”) do ônus da prova, capaz de gerar à parte, extrema dificuldade ou mesmo a impossibilidade de produzi-la.  

Diante do cenário acima, mostra-se prudente que o juiz, em pleno uso de seu poder geral de cautela, determine ao autor a apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo. Esta medida vai ao encontro das metas anuais do CNJ2, de julgar quantidade maior de processos de conhecimento em curso do que os distribuídos no ano, priorizando os processos dos maiores litigantes. 

Embora existam vozes resistentes à ideia de afetação proposta3, o Min. Moura Ribeiro fez constar que, em oportunidades anteriores, já se admitiu como válida exigência semelhante. A título de exemplo, no caso da ação de exigir contas, “exige-se que o correntista indique com precisão o período determinado em relação a cujos depósitos e retiradas ele pretende esclarecimentos e, mais do que isso, que ele evidencie as ocorrências duvidosas que justificam a propositura da ação.4 

E isso tudo porque, embora o acesso à justiça se trate de um direito fundamental previsto no art. 5º, XXXV, da CRFB/88, não se pode descuidar de que deve ser exercido com responsabilidade. 

Por consequência lógica, quanto mais o sistema for mal demandado, maior será a saturação dos tribunais, e mais demorada será a obtenção do provimento jurisdicional, em clara ofensa ao princípio da celeridade e da duração razoável do processo (art. 5°, LXXVIII, da CRF/1988). 

Nesse sentido, a Ministra Nancy Andrighi, enquanto relatora do REsp 1.817.8455 que “o surgimento de um padrão de processos infundados e repetitivos é forte indicador de abuso com aptidão para produção de resultados ilegais, razão pela qual essa conduta não está respaldada pela imunidade constitucional ao direito de peticionar.”. 

E os exemplos desses padrões infundados e repetitivos são inúmeros: a utilização do mesmo contrato para replicar diversas ações, por vezes até em comarcas diferentes6, o fracionamento da relação jurídica para a promoção de ações autônomas, como se fossem vários objetos distintos, ou até mesmo a falsa alegação de inexistência de relação jurídica com a instituição financeira, omitindo contratos e documentos, , dentre outros. 

Como se percebe, embora o Tema 1.198 seja a primeira oportunidade em que o Superior Tribunal de Justiça irá decidir sobre a matéria de litigância predatória sob o rito dos repetitivos, a Corte já está atenta e vem debatendo sobre esse assunto, de suma relevância, há algum tempo7

Por isso, as expectativas para a audiência pública designada para o dia 4 de outubro de 2023 estavam altas. A abertura da participação aos interessados em geral e, em especial, da OAB/MS – recorrente do recurso especial afetado –, construiu debates produtivos, já que, embora a Ordem dos Advogados tenha como característica a defesa dos interesses da classe, deve, ainda, regulamentar o bom uso da advocacia. 

Inclusive, a busca de apoio e controle pela via administrativa não é novidade. Existem inúmeros julgados dos mais diversos Tribunais, nos quais, em busca de um respaldo pela OAB, é determinada a expedição de ofício para ciência sobre a litigância predatória praticada no caso concreto e para adoção das medidas cabíveis. 

Essa colaboração é imprescindível, já que ao Poder Judiciário só pode ir até certo ponto, com a aplicação de multas e extinção das ações predatórias, mas, para coibição de condutas abusivas, é necessário um olhar amplo por todas as figuras do cenário jurídico brasileiro. 

Tendo esse contexto em vista, não há dúvidas de que a audiência pública realizada e, futuramente, a fixação do Tema nº 1.198/STJ, terão lastros para causar grandes impactos em causas envolvendo grandes litigantes, especialmente, causas bancárias, e decerto terão o condão de causar impacto positivo no que diz respeito à imposição de freios às demandas frívolas.  

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