A responsabilidade decorrente da violação de deveres anexos no Direito Civil Brasileiro
Por Ingrid de Azevedo Martins Ribeiro
Resumo
Este artigo examina a natureza da responsabilidade pela violação de deveres anexos no âmbito do direito civil brasileiro. Inicialmente, será apresentada uma análise dos conceitos de obrigação e de inadimplemento contratual, diferenciando o inadimplemento absoluto do relativo, com foco nas bases tradicionais da responsabilidade civil por descumprimento de obrigações. Será analisada também a boa-fé objetiva como princípio norteador das relações contratuais e os deveres laterais ou anexos como decorrências dessa boa-fé no âmbito contratual. A análise prosseguirá com a introdução do conceito de violação positiva do contrato, traçando sua origem e sua adoção no contexto do direito brasileiro. Serão examinadas também as implicações jurídicas decorrentes da violação positiva do contrato, considerando a relação entre essas consequências e os deveres anexos. Nesse sentido, será investigada a natureza da responsabilidade pela violação desses deveres, comparando-a com as formas tradicionais de inadimplemento e analisando a possibilidade de categorizá-la como um terceiro regime de responsabilidade. Por fim, o estudo demonstrará a relevância do tema, destacando sua contribuição para a compreensão dos deveres anexos no âmbito das relações obrigacionais.
Palavras-chave: responsabilidade civil, deveres anexos, boa-fé objetiva, violação positiva do contrato, inadimplemento contratual, direito civil brasileiro.
Abstract
This article examines the nature of liability for the breach of ancillary duties within the scope of Brazilian civil law. Initially, an analysis of the concepts of obligation and contractual non-performance will be presented, distinguishing absolute non-performance from relative non-performance, focusing on the traditional foundations of civil liability for breach of obligations. The objective good faith principle as a guiding factor in contractual relations and the ancillary or related duties stemming from this good faith within the contractual context will also be analyzed. The analysis will proceed with the introduction of the concept of positive breach of contract, tracing its origin and its adoption in the Brazilian legal context. The legal implications arising from the positive breach of contract will also be examined, considering the relationship between these consequences and the ancillary duties. In this regard, the nature of liability for the breach of these duties will be investigated, comparing it with traditional forms of non-performance and analyzing the possibility of categorizing it as a third regime of liability. Finally, the study will demonstrate the relevance of the topic, highlighting its contribution to the understanding of ancillary duties within the scope of obligatory relations.
Keywords: civil liability, ancillary duties, objective good faith, positive breach of contract, contractual non-performance, Brazilian civil law.
1. Introdução
A complexidade das relações contratuais no âmbito do direito civil brasileiro tem gerado debate sobre as bases da responsabilidade decorrente da violação de deveres anexos. O presente artigo busca abordar essa discussão ao explorar a natureza da responsabilidade pela violação de deveres anexos no contexto jurídico brasileiro. A análise desses deveres, que emergem da boa-fé objetiva, lança luz sobre as implicações da evolução dos princípios contratuais e sua influência na conceituação e aplicação da responsabilidade civil.
Inicialmente, será conduzida uma análise dos conceitos fundamentais de obrigação e inadimplemento contratual. Essa investigação permitirá uma compreensão das bases tradicionais da responsabilidade civil por descumprimento de obrigações, delineando as distinções entre inadimplemento absoluto e relativo. Em seguida, a boa-fé objetiva será apresentada como um novo supedâneo obrigacional, destacando seu papel como princípio norteador das relações contratuais e gerador de deveres anexos.
Como decorrências da boa-fé objetiva, será demonstrado que os deveres laterais ou anexos desempenham um papel crucial no vínculo obrigacional, influenciando diretamente a forma como as partes executam o contrato e o que elas esperam de suas obrigações contratuais.
Em seguida, será averiguada a origem do instituto da violação positiva do contrato, como foi realizada transposição desse conceito para o contexto do direito civil brasileiro e se ela realmente é necessária ao nosso ordenamento jurídico.
Assim, o artigo tem como objetivo principal explorar a natureza da responsabilidade pela violação de deveres anexos, apurando se essa forma de responsabilidade poderia ser categorizada como um terceiro regime, a violação positiva do contrato, a par das formas tradicionais de inadimplemento. A análise dessa questão não apenas contribui para o enriquecimento teórico do direito civil brasileiro, mas também tem implicações práticas significativas na interpretação e aplicação das relações contratuais.
2. O conceito de obrigação e de inadimplemento contratual
A compreensão prévia do conceito de obrigação e de inadimplemento contratual é imprescindível para uma análise da natureza da responsabilidade pela violação de deveres contratuais anexos em si.
Partindo desse pressuposto, cabe destacar que a obrigação deve ser vista como uma relação complexa, formada por um conjunto de direitos, obrigações e situações jurídicas, compreendendo uma série de deveres de prestação, direitos formativos e outras situações jurídicas que têm por finalidade a satisfação do interesse na prestação (ROSENVALD, 2005).
Hodiernamente, se entende que o que prevalece na relação obrigacional é a finalidade à qual ela se dirige. Assim, para além da perspectiva tradicional de subordinação do devedor ao credor, deverá ser observado, de maneira dinâmica, o bem comum da relação obrigacional, voltado para o adimplemento da forma mais satisfativa ao credor e menos onerosa ao devedor.
Apesar de existirem diversos conceitos relacionados à obrigação, consideramos o reconhecimento da existência de um bem comum como o ponto crucial a ser extraído da ideia de relação obrigacional, superando a perspectiva tradicional de subordinação entre as partes.
A partir desse entendimento, podemos visualizar a relação obrigacional não mais como uma relação de antagonismo entre credor e devedor, mas como uma relação de cooperação mútua na persecução do cumprimento da obrigação, através da observância de deveres anexos ou laterais de colaboração, cooperação e confiança.
Entendido o conceito de obrigação, inserido nesse aspecto finalístico da relação contratual, cabe em seguida a análise do conceito de inadimplemento contratual.
Para Jorge Cesa Ferreira da Silva:
O inadimplemento é um descumprimento de dever jurídico qualificado pela pré-existência de relação obrigacional. Não se trata, pois, de um mero desrespeito a uma imposição de ordem geral, a ser observada por todos os membros de uma comunidade política (dever de respeito à propriedade alheia, p.ex.), mas de um preceito individual, emanado do vínculo constituído entre dois pólos. É pressuposto do inadimplemento, portanto, a eficácia da sua fonte (que o contrato seja válido, que o dano seja indenizável etc.) e a exigibilidade da conduta (não adimple aquele que ainda não deve, ou que não está em condições jurídicas de dever).2
De forma clássica, podemos desdobrar o inadimplemento utilizando o já conhecido regime dicotômico da responsabilidade civil obrigacional, através das modalidades do inadimplemento absoluto e do inadimplemento relativo, que encontram guarida nos artigos 389 e 394 do Código Civil.
Conforme Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho, o inadimplemento relativo ou mora ocorre quando “a prestação, ainda possível de ser realizada, não foi cumprida no tempo, lugar e forma convencionados, havendo, por outro lado, o interesse do credor de que seja adimplida, sem prejuízo de exigir uma compensação pelo atrasado causado”.3 Nesse caso, o dever de prestar não é cumprido no todo, mas ainda subsiste a possibilidade de sê-lo, e referida possibilidade interessa ao credor.
Por outro lado, o inadimplemento absoluto se configura quando há a impossibilidade de o credor receber a prestação devida, seja pela real impossibilidade de cumprimento do dever de prestar, seja porque a obrigação não mais interessa ao credor, por motivo imputável ao devedor. Nesses casos, a obrigação principal converte-se em obrigação de indenizar.
Sobre o inadimplemento relativo, cabe aqui realizarmos uma ressalva sobre um ponto de dissonância doutrinário. Parte da doutrina entende a mora em sentido bastante restrito, tal como demora, impontualidade, atraso, violação apenas no dever de adimplir a obrigação no tempo ajustado. Por isso, as infrações relativas ao lugar e à forma do pagamento não configurariam mora.
Por outro lado, há doutrinadores que entendem pela expansão da concepção de mora, que, a teor do artigo 394 do Código Civil, contemplaria também o inadimplemento relativo ao pagamento feito de em dissonância com o lugar e a forma estabelecidos pela lei ou pela convenção intra partes.
Em ambos os casos, porém, a doutrina civilista converge ao ressaltar que a quebra da obrigação contratual, seja pelo inadimplemento absoluto ou pela mora, acarreta implicações significativas para as partes, gerando a responsabilidade contratual. Por sua vez, o principal efeito da responsabilidade civil é a reparação do dano ou sua indenização.
Nos dizeres de Maria Helena Diniz:
A responsabilidade do infrator, havendo liame obrigacional decorrente de contrato ou de declaração unilateral de vontade, será contratual, fundando-se na ocorrência da culpa em sentido amplo, que abrange o dolo e a culpa em sentido estrito. Nosso CC não trata diferencialmente o transgressor que agiu por dolo do que agiu por culpa, apenas excepcionalmente no art. 392, 1° alínea, distingue entre inadimplemento doloso e culposo para definir responsabilidade do inadimplemento. São pressupostos da responsabilidade contratual: obrigação violada, nexo de causalidade entre o fato e o dano produzido, culpa e prejuízo ao credor.4
São esses os conceitos que estabelecem o cenário para a análise da boa-fé objetiva e dos deveres laterais como fundamentos para a compreensão mais aprofundada da responsabilidade pela violação desses deveres, conforme será demonstrado a seguir.
3. A boa-fé objetiva como novo supedâneo obrigacional e os deveres laterais ou anexos dela decorrentes
A boa-fé objetiva emerge como um princípio norteador fundamental nas relações contratuais no âmbito do direito civil, à luz das balizas da Constituição da República de 1988. O novo ordenamento constitucional, compromissado com os direitos fundamentais dos indivíduos e com as questões sociais da nação, instituiu valores que serviram de suporte axiológico a toda a legislação infraconstitucional.
Sob esta perspectiva, a promulgação da Constituição de 1988 representou o ato de reconstrução do Estado, firmando-o, a partir de novas bases de valores que priorizavam o homem, a pessoa humana que se quer cidadão digno, fluente e influente sobre o seu destino (ROCHA, 2001).
Diante desse novo panorama constitucional, o ordenamento jurídico passou a ser imbuído de novos valores, sobretudo valores relacionados à solidariedade social e à valorização do ser humano, que passaram a se sobrepor aos aspectos meramente formais da letra fria da lei ou dos contratos. Isso porque na medida em que Constituição configura a base de todo o ordenamento jurídico, toda a legislação infraconstitucional passa a lhe dever obediência, sob a ótica do Direito Civil Constitucional.
Foi nesse contexto que, reconhecida como um elemento essencial para a manutenção da confiança e da lealdade entre as partes, a boa-fé objetiva surgiu para transcender a mera observância formal das obrigações contratuais, através de sua tríplice função5: (i) função interpretativa dos contratos; (ii) função restritiva do exercício abusivo de direitos contratuais; e (iii) função criadora de deveres anexos à prestação principal.
Consoante a definição de Flávio Alves Martins:
A boa-fé, no sentido objetivo, é um dever das partes, dentro de uma relação jurídica, se comportar tomando por fundamento a confiança que deve existir, de maneira correta e leal; mais especificamente, caracteriza-se como retidão e honradez, dos sujeitos de direito que participam de um relação jurídica, pressupondo o fiel cumprimento do estabelecido.6
Nesse diapasão, já se pode vislumbrar a insuficiência da clássica dicotomia entre inadimplemento absoluto e relativo, que considera a relação obrigacional apenas sob a lógica de crédito, ou seja, à existência de um vínculo cujo objetivo é simplesmente o exercício do direito subjetivo de crédito através do cumprimento imediato de um dever jurídico de débito correspondente.
Contudo, a evolução histórica da ciência jurídica permitiu a incorporação de outros elementos intrínsecos ao vínculo, ao situá-lo em uma visão realista das motivações que sustentam a relação obrigacional. Isso resulta na presença de uma entidade muito mais intrincada do que aquela relação estritamente vinculada ao dever de fornecer, conforme a lógica de crédito. Isso ocorre porque a obrigação surge da necessidade de atender a uma demanda genuína e concreta originada de expectativas, motivações e intenções sociais, morais ou econômicas (RIBEIRO DE FARIA, 2001).
Dentro desse contexto, emergem os deveres laterais ou anexos, os quais se originam da boa-fé objetiva e complementam as obrigações principais estabelecidas nos contratos. Esses deveres abrangem a obrigação de informar, a lealdade, a colaboração e outros comportamentos que não apenas asseguram o cumprimento das obrigações contratuais, mas também promovem um ambiente de confiança e integridade entre as partes contratantes.
Judith Martins-Costa define que os deveres anexos ou laterais são:
“[…] deveres de adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato […] dada a relação de confiança em que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação. Ao ensejar a criação desses deveres, a boa-fé atua como fonte de integração de conteúdo contratual, determinando a sua otimização, independentemente da regulação voluntaristicamente estabelecida”.7
Com efeito, o adimplemento contratual passou a não mais se limitar ao instante singular do seu cumprimento, passando a percorrer por toda a continuidade da relação obrigacional, abrangendo o comportamento das partes antes e após o momento pontual do vencimento (SCHREIBER, 2007).
Os deveres anexos, portanto, refletem a dinâmica em constante evolução das relações contratuais, onde a boa-fé objetiva desempenha um papel central na configuração de direitos e obrigações entre as partes.
A compreensão da boa-fé objetiva e dos deveres anexos é essencial para a análise da responsabilidade pela violação de tais deveres, uma vez que a infração a esses deveres pode desencadear consequências jurídicas substanciais. A próxima seção explorará a introdução do conceito de violação positiva do contrato, sua origem e transposição para o contexto do direito civil brasileiro.
4. A violação positiva do contrato: origem, implicações e possível transposição para o Direito Civil Brasileiro
Como visto, a evolução das teorias contratuais trouxe consigo uma perspectiva inovadora: a noção de que a violação de um contrato pode não se limitar ao simples inadimplemento, mas também abranger situações em que a parte cumpre a obrigação de maneira inadequada ou insatisfatória. Essa perspectiva deu origem ao conceito da chamada violação positiva do contrato.
Sobre a origem desse instituto, elucida Jorge Cesa Ferreira da Silva:
A ideia da violação positiva do contrato – ou “violação positiva do crédito”, como é mais costumeiramente chamada na Alemanha – nasceu de estudo famoso de Hermann Staub, importante jurista alemão do final do século XIX e início do século XX. Em 1902, dois anos após a entrada em vigor do BGB, Staub reconheceu no então novo Código a existência de lacunas no regramento do inadimplemento: para além do inadimplemento absoluto (lá chamado de impossibilidade) e da mora, existiriam outras hipóteses não reguladas, apesar de igualmente configurarem inadimplemento. Para ele, tanto o inadimplemento absoluto quanto a mora correspondiam a violações negativas do crédito: no primeiro, a prestação não é realizada; no segundo, a prestação não é realizada no momento adequado. Já as hipóteses por ele elencadas acarretariam descumprimento obrigacional exatamente porque a prestação foi realizada. Por isso, para diferenciar esses casos dos anteriores, entendeu chamar essas hipóteses de violações positivas do contrato Entre os vários exemplos referidos por Staub encontra-se o da cervejaria que, contratada para fornecer regularmente cerveja a uma estalagem, o faz regularmente e no dia adequado, mas, em algumas oportunidades, fornece cerveja de pior qualidade, o que redunda na perda de freguesia. No caso, não teria havido impossibilidade, visto que o interesse permanecia e a prestação era possível, e tampouco mora, visto que a prestação foi realizada no momento adequado. No entanto, alguma espécie de descumprimento contratual teria existido, espécie esta não albergada pelo então novo Código alemão. Vale lembrar ainda que, neste, o conceito de mora do devedor se restringe ao atraso culposo da prestação.8
No contexto do direito civil brasileiro, a transposição desse conceito foi objeto de diversos debates doutrinários, pois a admissão ou não da figura da violação positiva do contrato no Brasil depende, inicialmente, do quão abrangente seria a interpretação concedida à mora por parte de cada doutrinador.
Orlando Gomes, ao adotar um conceito mais restrito de mora, aduz:
O conceito de violação positiva do crédito, conforme crítica de Enneccerus, está mal delimitado em relação à impossibilidade e à mora, porque a infração contratual positiva desloca para segundo plano o ato que determina o dano, enquanto a mora e a impossibilidade representam situações jurídicas nas quais pode desembocar qualquer violação de crédito, tanto de natureza negativa como positiva. Entendido, porém, como cumprimento defeituoso, no sentido que Zitelmann empresta à locução, serve para qualificar as situações nas quais o devedor não efetua o pagamento no lugar e forma convencionados. Cumpre mal a obrigação quem não observa estipulação contratual ou determinação legal atinentes a esses modos de satisfazer a prestação. Os que assim procedem violam, com um ato, o crédito. Comportam-se diferentemente de quem atrasa o pagamento, pelo que incorreto será dizer que incorrem na mora. A estas violações positivas de crédito, aplicam-se, entretanto, por analogia, as regras da mora. Daí, a confusão. Verifica-se apenas tratamento analógico, e, assim, tal como na mora, o devedor responde pelo cumprimento defeituoso, devendo indenizar o prejuízo a que der causa, se a imperfeição lhe for imputável, ainda quando, da infração, não resulte impossibilidade ou mora.9
Majoritariamente, esse parece ser o conceito mais adotado pela doutrina brasileira, que defende que a violação positiva do contrato deve ser aplicada especificamente para os casos de violação a deveres anexos, que não estariam diretamente vinculados à prestação principal. Nesse sentido, aviolação de deveres anexos poderia ser considerada como uma modalidade autônoma de inadimplemento, com fundamentos distintos daqueles do inadimplemento absoluto ou relativo.
Jorge Cesa Ferreira da Silva, por exemplo, defende a viabilidade de admissão da violação positiva do contrato sob o argumento de que há amplo espaço não preenchido ao lado do inadimplemento absoluto e da mora10, considerando aqui um conceito mais restrito de mora. Compartilhando a mesma opinião pela possibilidade desse instituto no Brasil, Renata Steiner sustenta que seriam hipóteses de violação positiva do contrato o cumprimento imperfeito e a quebra dos deveres anexos de conduta.11 Por sua vez, os efeitos da violação positiva do contrato desencaderiam uma obrigação de indenizar e, em algumas situações, conferiria à outra parte o direito de resolver o contrato12.
Por outro lado, parte da doutrina civilista entende que a violação de deveres anexos é uma variante do inadimplemento relativo, pois a mora do devedor em cumprir os deveres secundários já caracterizaria um descumprimento da obrigação contratual.
Nessa linha, Aline Terra entende que a violação positiva do contrato não difere do inadimplemento absoluto ou da mora, não sendo, assim, figura efetivamente útil no direito brasileiro na medida em que, no nosso ordenamento, inexistiria lacuna legislativa a ser preenchida.13
Isso porque na medida em que a boa-fé objetiva passou a ser uma condição intrínseca a todo e qualquer contrato, o descumprimento dos deveres laterais que dela emanam só poderiam ter por consequência o próprio inadimplemento contratual. Nesse sentido, as consequências da violação positiva do contrato seriam as mesmas do inadimplemento, não havendo motivo para a importação de outro instituto com as mesmas implicações.
Dito isso, pode-se concluir que a violação dos deveres laterais ou anexos trouxe à tona uma perspectiva mais abrangente da responsabilidade contratual, considerando não apenas a ausência de cumprimento, mas também a adequação de seu desempenho, seja sob a ótica da violação positiva do contrato, seja pela ótica do próprio inadimplemento da obrigação principal.
Por consequência, entende-se que a responsabilidade pela violação de deveres anexos tem natureza contratual, atraindo todas as consequências jurídicas relacionadas a essa forma de inadimplemento, como, por exemplo, o prazo prescricional decenal, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça já definiu que nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra do art. 205 do Código Civil (REsp 1532514/SP).
5. Considerações Finais
A análise da natureza da responsabilidade pela violação de deveres anexos no âmbito do direito civil brasileiro revela a complexidade das relações contratuais contemporâneas. A evolução dos princípios contratuais, sobretudo a ascensão da boa-fé objetiva e dos deveres anexos, desafia as noções tradicionais de inadimplemento e abre espaço para uma compreensão mais abrangente da responsabilidade contratual.
Ao longo deste estudo, examinamos os fundamentos dos conceitos de obrigação e inadimplemento contratual, destacando as distinções entre inadimplemento absoluto e relativo. Exploramos a boa-fé objetiva como princípio norteador das relações contratuais e sua conexão com os deveres laterais ou anexos, os quais desempenham um papel fundamental no alcance das expectativas almejadas pelas partes no momento da celebração do contrato.
Analisamos também o instituto da violação positiva do contrato e a natureza da responsabilidade pela violação dos deveres anexos, que ainda suscita debates e controvérsias doutrinárias, com diferentes opiniões sobre se essa forma de responsabilidade deve ser categorizada como um terceiro regime ou como uma variante do inadimplemento. A convergência e a divergência de visões destacam a complexidade e a riqueza do debate jurídico nesse campo.
Em última análise, entendemos que a análise da responsabilidade pela violação de deveres anexos amplia o entendimento sobre as obrigações contratuais, reforçando a importância da boa-fé e dos deveres anexos como elementos interconectados e complementares no âmbito contratual e obrigacional.
Como conclusão, entendemos que, sob o enfoque do Direito Civil Constitucional, o atendimento ao dever de prestar não é capaz de garantir, por si só, uma verdadeira satisfação material do credor. Assim, o conceito de adimplemento não poderia se vincular somente à noção de adimplemento da obrigação principal, mas sim ao atendimento à finalidade do vínculo, visando a satisfação das motivações e expectativas das partes relacionadas ao contrato celebrado.
Deste modo, sendo essas variáveis também integrantes da relação obrigacional, nos filiamos à corrente doutrinária que entende que a violação dos deveres anexos gera, consequentemente, o inadimplemento contratual, sem a necessidade da criação de um terceiro regime para gerir essas hipóteses.
Nesse contexto, acredita-se que a responsabilidade pela violação de deveres anexos tem natureza contratual e, portanto, sofre todos os efeitos jurídicos relacionados aos inadimplementos dessa natureza.
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