A relação entre a formação da Pauta Temática do Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional (CN)
Por Pietra Cardoso.
A formação de uma pauta diz muito sobre quais temas são mais importantes na vida das pessoas, seja uma pauta de uma reunião do condomínio, seja uma pauta de uma discussão de relacionamentos, ou mesmo de uma conversa entre pai e filho. A pauta nada mais é do que um roteiro temático a ser seguido.
Assim, a formação da pauta política do Congresso Nacional ou mesmo a pauta judiciária, do STF, são, sem dúvidas, algo a ser analisado, ainda mais quando considerarmos a importância dos temas abordados por ambos os órgãos, bem como os impactos nacionais das suas deliberações.
Ao observar as pautas do cotidiano, é empiricamente perceptível que muitas vezes elas são construídas com base em problemas do momento, ou seja, não carecem de grande elaboração teórica ou científica, haja vista que elas têm um impacto social, econômico e político bem reduzido, cenário diferente do que se pode verificar nas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal e/ou Congresso Nacional.
Sendo assim, é de extrema importância que – pelo enorme impacto que elas causam nas vidas de todos, as pautas legislativas e judiciais devem ser estudadas isoladas, bem como em conjunto, uma com a outra. Elas podem ter ainda mais relação do que se possa imaginar. Sobre isso, aspectos constitucionais e de costume podem explicar tal relação.
Isso porque a maneira como os poderes vivem, se organizam e se relacionam têm relação direta com a consolidação do modelo democrático. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 2º, já estabelece que os poderes são “…independentes e harmônicos.” Ou seja, o próprio texto constitucional estabeleceu uma relação harmônica e parcimoniosa entre os poderes. Ocorre que, no atual estágio evolutivo da democracia constitucional brasileira, a constante colisão entre os poderes tem feito muitos estudiosos pesquisarem as mais diversas relações entre eles. As pesquisas abordam desde suas funções típicas, até as suas funções atípicas, bem como um possível (des)alinhamento entre elas.
Um dos diversos tipos de relação entre o Judiciário (STF) e o Legislativo (CN) é a forma como cada um constrói a sua pauta e, principalmente, os temas que serão analisados. Esse assunto é muito importante porque os dois poderes têm razão de ser absolutamente distintas e, muitas vezes, tratam de temas semelhantes. Assim, há necessidade de equilíbrio. Segundo Montesquieu, para que haja esse equilíbrio:
“[…]precisa-se combinar os poderes, regrá-los, temperá-los, fazê-los agir; dar a um poder, por assim dizer, um lastro, para pô-lo em condições de resistir a um outro. É uma obra-prima de legislação, que raramente o acaso produz, e raramente se deixa a prudência produzir (…). Sendo o seu corpo legislativo composto de duas partes, uma acorrentada a outra pela mútua faculdade de impedir. Ambas serão amarradas pelo Poder Executivo, o qual o será, por seu turno, pelo Legislativo. Esses três poderes
deveriam originar um impasse, uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, são compelidos a caminhar, eles haverão de caminhar em concerto.¹”
Mas, o que ocorreria se os poderes Legislativo e Judiciário, em razão do desenho institucional prescrito pela Constituição Federal de 1988, passassem a ter as mesmas pautas temáticas?
Por adotarmos uma Constituição mais ampla, com o rol de direitos e garantias considerado prescritivo, a pauta constitucional brasileira tem sido bastante discutida. Sobre isso, segundo o Professor Conrado Hubner Mendes, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, bastar lançar-se olhar sobre questionamentos como: A Constituição permite que uma lei proíba a compra de arma de fogo? Permite escrever romance de conteúdo racista ou homofóbico? Autoriza escrever biografia sem autorização do bigrafado? Pode uma lei exigir que um interessado em ser jornalista tenha diploma de um curso superior de jornalismo? Pode o Estado controlar o conteúdo de programas televisivos ou ter acesso a informações bancárias particulares livremente? A pesquisa com células-tronco retiradas de embriões viola o direito à
vida? O que dizer da interrupção da gravidez de feto anencéfalo? Pode uma escola pública proferir ensino religioso confessional? E a universidade pública realizar processos seletivos com critérios distintos para pessoas de origens sociais e raciais diferentes? Pode o Estado impedir abertura de documentos de registros relativos ao regime militar?2
Essas e outras questões estão presentes no cotidiano da sociedade brasileira, não só como pauta de costumes, mas, também, como pauta judiciária e/ou legislativa, já que, a Constituição permitiu que tais temas fossem discutidos sob sua égide.
Sendo assim, o objeto do presente texto vai se restringir à análise da formação da pauta do Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, sob o aspecto da influência sofrida por questões políticas e sociais. Para isso, uma primeira questão: a proposta de um Estado Constitucional permite tamanha discricionariedade aos poderes na condução de temas nacionais de tamanha importância?
Sobre o papel do Estado Constitucional diante de um cenário de tanta discricionariedade política, bem como hipertrofia dos poderes, notadamente, do Poder Judiciário, o Professor Clèmerson Merlin Clève, da Faculdade de Direito da UFPR, teceu as seguintes considerações:
“A proposta do Estado Constitucional era a de limitar o poder político, mantendo-o concentrado. E isto ocorreria da seguinte forma: primeiro, tratava-se de organizar o espaço político de tal maneira que o poder se encarregasse de controlar o próprio poder. Aqui reside o núcleo conducente à separação dos poderes; depois, deslocando a soberania das mãos do monarca para as mãos do povo ou da nação. Ocorre, neste passo, a transferência da titularidade do poder soberano. Este deslocamento foi suficiente para deflagrar as produções discursivas que favoreceram a construção da teoria do Poder Constituinte. Portanto, a noção de Estado Constitucional (ou de Direito) repousa sobre a ideia da unidade. Aliás, como bem o disse Rousseau, o poder soberano é uno. Não pode sofrer divisão. (…) Montesquieu, ao contrário, punha absoluta ênfase na proposta de limitação do exercício da autoridade. O que a doutrina liberal clássica pretende chamar de separação dos poderes, todavia, não poderia consistir numa estratégia de partição de algo, por natureza, uno e indivisível. (…) A separação de poderes corresponde a uma divisão de tarefas estatais, de atividades entre distintos órgãos, e aí sim, autônomos órgãos assim denominados de poderes. O poder político é indivisível, teoricamente, porque o seu titular é o povo que não o divide, senão que, em face da ação do Poder Constituinte, confere o exercício a diferentes órgãos encarregados de exercer distintas tarefas ou atividades, ou ainda diferentes funções. (…) Quando a doutrina tradicional 6 trata do poder, dentro do contexto da célebre teoria em discussão, certamente, com esse significante está querendo fazer menção a um órgão estatal autônomo ou a uma função de Estado. Nada mais do que isso.³”
No Brasil, desde a Constituição da República de 1891, houve a adoção da separação de poderes
em legislativo, executivo e judiciário4 (art. 155), com funções muito bem delimitadas pelo
próprio texto constitucional, mediante enunciados prescritivos que, inicialmente, não conferia
grande margem de interpretação. Ocorre que, hoje, esse cenário mudou bastante. Na atualidade,
as funções típicas de cada Poder se mantêm, no entanto, as funções atípicas têm passado por
um nítido processo de hipertrofia6.
Ao analisarmos os dois poderes propostos (legislativo e judiciário, ambos da União) pelo presente enfoque (pauta temática) é importante apontar, inicialmente, que o poder legislativo sempre sofreu mais influência dos anseios da sociedade na formação de sua agenda (pauta). Isso porque, o Brasil é uma democracia representativa, cuja característica principal é a escolha política, por sufrágio universal, dos seus representantes, o que, em certa medida, condiciona os representantes às pautas mais importantes dos seus representados (eleitores).
Para o Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, Jorge Miranda, “com a democracia representativa, a eleição torna-se peça essencial no sistema, torna-se via de assegurar a coincidência da vontade dos governantes com a vontade do povo e a prossecução do interesse colectivo de harmonia com o titular deste, o povo.7”
Assim, por interesses eleitorais, os candidatos constroem discursos em torno dos interesses das mais diversas classes, visando, sempre, em chegar no cargo desejado. Ao tomarem posse, esses mesmos políticos envidam esforços para que a sua pauta seja concretizada por meio de uma produção legislativa tão vasta como a brasileira8.
Uma tentativa de racionalizar as discussões de temas importantes no Congresso Nacional, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 58, instituiu as chamadas comissões parlamentares como órgãos técnicos que prestam auxílio ao funcionamento do Poder Legislativo por meio da realização de debates mais detalhados e especializados sobre as propostas de lei. Na dicção do texto constitucional, às comissões, em razão da mateira de sua competência, cabe:
Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa; II – realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; III – convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições; IV – receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer
pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas; V – solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão; VI – apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer.”
Ou seja, em que pese o caráter mais técnico das comissões parlamentares, elas não detêm o poder de escolher os assuntos a serem debatidos, elas apenas racionalizam o processo de discussão dos temas mais importantes do país, que continuará, na maioria das vezes, sendo pautados por interesses comuns entre os representantes e os representados.
Cabe ressaltar, ainda, que outra forma contribuinte na formação de pauta legislativa são os acontecimentos de fatos extraordinário, como foi o caso da pandemia da Covid-19. Com a eclosão da pandemia no início do ano de 2020, o país passou a ter uma agenda legislativa que visava, naquele momento, a diminuição dos impactos da Covid-19, nas mais diversas áreas da vida brasileira. Isso para o Congresso Nacional.
No entanto, outra não foi a postura do STF, que também passou por um processo de exame de várias dessas medidas legislativas, o que ficou conhecido como “judicialização da crise”, oportunidade na qual o STF envidou esforços para, também, tentar diminuir os impactos da Covid -19. Sobre isso, as professoras Vanessa Elias de Oliveira e Lígia Mori Madeira, apontam que:
“A pandemia de Covid-19 trouxe consigo não apenas uma crise sanitária sem precedentes na história do Brasil recente, mas também o agravamento da crise política. E, como de costume, os embates políticos deságuam no Judiciário, promovendo a judicialização da política e das políticas públicas. Partidos de oposição ao governo federal têm utilizado o Supremo Tribunal Federal como um caminho para contestar e
derrubar medidas relacionadas à pandemia adotadas.9”
A judicialização da política tem sido um tema de bastante interesse e preocupação de parte da doutrina especializada10, sobretudo, com a pauta de ambos os poderes da República, e o modo como cada uma delas é formada.
Ou seja, conforme ensina Ronald Dworkin: “os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo11”. O argumento jurídico, por sua vez, em tese, teria outra função dentro da sociedade, uma função técnica.
Ocorre que as relações entre o STF e a sociedade, segundo Joaquim Falcão:
“(…) têm se intensificado à medida que o tribunal passa a decidir cada vez mais sobre
questões relevantes ao dia a dia dos cidadãos. Com a criação da TV Justiça e a
expansão das redes sociais, a garantia das liberdades de expressão e de informação e
a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), intensificaram-se o interesse e o
conhecimento de segmentos da população acerca do STF, assim como a presença
deste na mídia12”
Ainda para o professor da FGV/RIO, grande especialista em STF:
“um momento decisivo desse movimento de aproximação entre STF e mídia foi a criação da TV Justiça (Lei 10.461, de 17 de maio de 2002), por iniciativa do próprio tribunal. O canal, que iniciou suas atividades em agosto daquele mesmo ano, por decisão pessoal do então presidente Ministro Marco Aurélio Mello, transmite ao vivo as sessões do plenário do STF e revolucionou as relações do STF não somente com a mídia, mas, por meio dela, com a própria opinião pública13.”
O referido canal, além de deixar a sociedade mais próxima do STF, acabou tornando a obra do professor Aliomar Baleeiro “O Supremo Tribunal Federal, esse Outro Desconhecido”, um paradigma inacabado. Isso porque o STF, atualmente, ocupa um lugar de destaque dentro da sociedade brasileira, a ponto de o professor Oscar Vilhena Vieira entender que estamos vivendo num regime de “Supremocracia14”.
Desse modo, hoje, é difícil imaginar um tema de relevância social que não esteja na pauta do STF. Como já dito anteriormente, a pauta constitucional brasileira é, sem dúvidas, muito ampla, e, o STF, como guardião da Constituição, nos termos o seu art. 102, caput, acabou tendo que assumir a responsabilidade de dar a palavra final nos temas mais complexos do país, o que, sem dúvida, o colocou como um do player importante no cenário político. Em razão disso, a formação da sua pauta também sofre impactos significativos dos anseios nacionais.
Dado o exposto, é possível concluir que, atualmente, tanto o Congresso Nacional quanto o Supremo Tribunal Federal têm sofrido o mesmo tipo de influência na formação de suas respectivas pautas temáticas. Isso significa que há, ainda mais, necessidade de diálogo entre eles para que não haja decisões conflitantes, ocasionando, assim, desarmonia entre os poderes, o que não coaduna com os valores constitucionais adotados pela Constituição Federal de 1988.
Referências
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1 MONTESQUIEU. O espírito das leis. Introdução, tradução e notas de Pedro Vieira Mota. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 1994. p. 25-26.
2 MENDES, Conrado Hubner. Controle de constitucionalidade e democracia. -Rio de Janeiro: Elisevier, 2008, p. XXIII.
3 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29-32.
4 O antigo Poder Moderador, símbolo da monarquia, foi abolido.
5 “Art 15 – São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si.”
6 BEÇAK, Rubens. A hipertrofia do executivo brasileiro: o impacto da constituição de 1988. 2005. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Acesso em: 24 ago. 2022.
7 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo III: estrutura constitucional do Estado. 5. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 372.
8 RICCI, Paolo. O Conteúdo da Produção Legislativa Brasileira: Leis Nacionais ou Políticas Paroquiais? Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 46, no 4, 2003, pp. 699 a 734.
9 OLIVEIRA, Vanessa Elias de, e MADEIRA, Lígia Mori. Judicialização da política no enfrentamento à Covid19: um novo padrão decisório do STF? Revista Brasileira de Ciência Política, nº 35. e247055, 2021, pp 1-44. DOI: 10.1590/0103-3352.2021.35.247055.
10 ZAULI, Eduardo Meira. Judicialização da Política, Poder Judiciário e Comissões Parlamentares de Inquérito no Brasil. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 40, p. 195-209, jun. 2011.
11 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 129.
12 FALCÃO, Joaquim. O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista? Revista Lua Nova: São Paulo, ed. 88, p. 429-469.
13 Idem.
14 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO 4(2) | P. 441-464 | JULDEZ 2008.