A controvérsia acerca da correção das dívidas civis no Brasil: Parte II – Projeto de Lei nº 6.233/2023: uma solução viável para a controvérsia?
Por Izabella Ribeiro Xavier
Clique aqui para ler a Parte 1
Conforme abordado em artigo anterior, a controvérsia acerca da correção das dívidas civis no Brasil não é recente. O STJ vem, no âmbito do julgamento do REsp nº 1.795.982/SP, afetado à sistemática dos recursos repetitivos, buscando, mais uma vez, a pacificação da questão. Contudo, o julgamento parece estar longe do fim, considerando o pedido de vista do Min. Mauro Campbell Marcas na última sessão do dia 06.03.20241, em que se parecia chegar à mesma conclusão ora majoritária na jurisprudência do Tribunal: aplicação da taxa Selic para a correção das dívidas civis. De olho nesse aspecto, convém igualmente analisarmos as movimentações legislativas voltadas à pretensa uniformização do tema.
Dentro desse contexto, o projeto de lei (PL) nº 6.233/23, apresentado em dezembro/2023 pelo Presidente da República, sob o rito da urgência constitucional, e elencado como uma das prioridades do Governo Federal para o ano de 20242, tem dois objetivos principais: (i) alterar o Código Civil nos dispositivos relativos à atualização monetária e aos juros; e (ii) estabelecer a inaplicabilidade da chamada “Lei da Usura” às obrigações contratadas entre pessoas jurídicas, representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários ou contraídas perante fundos ou clubes de investimento, bem como esclarecer que o mútuo feneratício pode ter seus juros livremente pactuados, com ou sem capitalização, observada a legislação específica, sendo apenas subsidiariamente aplicável a taxa legal do Código Civil.
O segundo ponto retro consiste na pretensão de uniformizar as condições para definição de taxas de juros em operações praticadas dentro e fora do sistema financeiro, supostamente de forma a viabilizar melhores condições de oferta de crédito aos tomadores. De acordo com o autor do projeto, a existência de regra de limite de juros exclusivamente para operações fora do sistema financeiro induz à intermediação mesmo quando ela não é a opção mais eficiente, gerando custos desnecessários a diversas operações que poderiam ser realizadas diretamente entre poupadores e tomadores de crédito.
Entende-se que a pretensão pode criar uma insegurança jurídica no sistema de crédito, na medida em que pessoas jurídicas que não sejam instituições financeiras não têm notória expertise técnica no mercado de crédito, o que poderia eventualmente levar ao surgimento de possíveis créditos podres. Além disso, sabe-se que o teto de juros serve, eminentemente, para evitar superendividamentos virtuais, por dívidas fantasiosamente infladas por juros. Assim, para liberar os juros de um máximo, deveria haver regulamentação própria, como a feita no âmbito do Sistema Financeiro Nacional.
Contudo, a discussão é muito mais vasta, não sendo exatamente a efetiva pretensão do presente artigo, que se dispõe a analisar com mais cuidado o primeiro aspecto: mudanças nas regras relativas à atualização monetária e aos juros.
Com efeito, na Exposição de Motivos Interministerial nº 160/2023, o Ministério da Fazenda e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, nas pessoas de seus (então) titulares, explicam que a intenção é “uniformizar a aplicação de juros nos contratos de dívida em que a taxa não for convencionada, assim como na responsabilidade civil extracontratual, bem como a permitir a realização de operações de crédito fora do sistema bancário, em condições mais favoráveis aos tomadores de empréstimos”.
Ainda de acordo com os Ministérios, “em um cenário econômico internacional marcado por desafios e incertezas, é urgente que se dê[em] estímulos ao aumento de confiança das empresas brasileiras, principalmente no que se refere às regras relacionadas à estabilidade do custo de financiamento. Isso não apenas fomentará o investimento e o crescimento empresarial, mas também contribuirá para a estabilidade financeira do país como um todo”.
Os Ministérios também explicitam a “necessidade de definir a taxa legal com metodologia clara, uniforme e compatível com as condições de mercado, conferindo já em curto prazo a devida segurança jurídica na sua aplicação, assim como para uniformizar as condições para definição das taxas de juros com ou sem intermediação bancária, estimulando o desenvolvimento do mercado de crédito, com impactos na geração de emprego e renda no país”.
De forma específica, e no que importa à presente análise, quanto às modificações propostas ao Código Civil, o projeto pretende modificar os artigos: (i.1) 389, a fim de incluir parágrafo único3 voltado à aplicação do IPCA como índice de atualização monetária, em caso de não convenção ou previsão legal específica de outro índice de atualização; e (i.2) 406 a fim de estabelecer a taxa legal em caso de não convenção ou previsão legal dos juros, a qual “corresponderá à média aritmética simples das taxas para o prazo de cinco anos da estrutura a termo da taxa de juros real das Notas do Tesouro Nacional Série B – NTN-B, apuradas diariamente, dos doze meses que antecedem a sua definição, acrescida de cinco décimos por cento ao mês”, permitida a capitalização anual, até o pagamento efetivo.
Prima facie, é possível perceber que o critério proposto pelo Poder Executivo não envolve o aglutinamento de atualização monetária e juros moratórios em uma só figura – que é justamente o caso da utilização da Taxa Selic. Ao revés, propõe-se a manutenção da cisão entre a figura da atualização e a figura dos juros, o que é juridicamente mais adequado e tende a facilitar os cálculos judiciais nos casos de diferentes datas para termo inicial.
A atualização monetária, como se viu, será preferencialmente vinculada ao IPCA, caso não seja convencionado ou legalmente previsto índice específico. A opção legal pelo IPCA é perfeitamente justificável, na medida em que indica a inflação oficial do Brasil, medida pelo IBGE, órgão público competente para tanto. É claro que, em obrigações civis de natureza mais específica – como contratos no âmbito da construção civil, por exemplo –, os contratantes podem preferir a vinculação a índices diversos, mais adequados ao seu segmento econômico específico, o que também será chancelado pela legislação.
A seu turno, quanto aos juros, é de se notar que a taxa legal será aplicável aos casos de: mútuos com fins econômicos cuja taxa não tenha sido convencionada; mora no adimplemento de uma obrigação negocial, para a qual as partes não tenham convencionado uma taxa; a responsabilidade civil decorrente de ato ilícito e as perdas e danos de modo amplo, em que as partes envolvidas sequer tiveram a oportunidade de firmar um contrato.
Para além da ausência de uniformidade jurisprudencial, a Exposição de Motivos Interministerial afirma que ambas as taxas não se mostram mais adequadas para os fins mencionados: a taxa Selic não remunera o credor adequadamente pelos riscos a que está exposto, ao passo que a taxa real de 1% ao mês não responde às condições de mercado, podendo ser relativamente alta ou baixa a depender de aspectos conjunturais.
Dessa forma, referido projeto de lei define a taxa legal de juros como a média aritmética simples das taxas de juros reais das Notas do Tesouro Nacional Série B – NTN-B para o prazo de cinco anos, apuradas diariamente, nos doze meses que antecedem a sua definição, acrescida de 0,5% ao mês.
De acordo com o portal do Tesouro Direto, a Nota do Tesouro Nacional-Série B (NTN-B) é um título pós-fixado, cuja rentabilidade é composta por uma taxa anual pactuada no momento da compra mais a variação do IPCA4. Trata-se do famoso Tesouro IPCA+.
Como o Projeto se propõe a considerar apenas os juros reais das Notas do Tesouro, deve haver o próprio desconto inflacionário, de modo que o IPCA não será incidente no caso concreto do cálculo dos juros, mas tão somente o valor do prêmio extrainflacionário, ou seja, “taxa anual pactuada [pré-fixada] no momento da compra”.
Na cotação do final de janeiro5, a NTN-B, para o prazo de cinco anos (2029), estava remunerando na proporção de IPCA+5,39% ao ano. Esses 5,39% seriam utilizados para o cálculo da média mensal dos doze meses anteriores à fixação da incidência inicial dos juros, a serem acrescidos de até 0,5% ao mês, conforme definição do Conselho Monetário Nacional.
De acordo com os dados históricos das taxas da referida NTN-B6, o prêmio médio nos últimos 12 meses, a partir de 255 dados diários registrados pelo portal do Tesouro Direto em 2023 e 2024, foi de aproximadamente 5,55% ao ano. Em capitalização simples, isso equivaleria a aproximadamente 0,46% ao mês. Com o máximo de 0,50% ao mês previsto na novel redação pretendida para o art. 406, isso equivaleria a dizer que os juros, caso o termo inicial de sua fluência fosse a data de hoje, seriam de cerca de 0,96% ao mês.
Além de tais juros, ainda haveria a incidência da atualização monetária, normalmente vinculada ao IPCA, índice que, nos últimos 12 meses, teve média mensal de cerca de 0,37%7.
Ou seja, com a proposta do projeto de lei, correção média das dívidas civis no Brasil nos últimos 12 meses se daria na proporção de cerca de 1,33% ao mês. Se o Banco Central entendesse não ser o caso de incidência do acréscimo de 0,5% ao mês, falaríamos de uma correção à proporção de cerca de 0,83% ao mês.
Para simplificar sua aplicação pelos Tribunais, o projeto também prevê a divulgação anual das taxas pelo Banco Central, conforme metodologia a ser definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), o que será muito salutar para a segurança jurídica dos atores do mercado.
Além disso, o CMN ainda poderá estabelecer um percentual fixo menor que 0,5% ao mês. Entende-se que tal ajuste a menor pelo CMN é importante para evitar que os juros legais acabem se tornando mais atrativos, enquanto investimento possível, do que a aplicação em real desenvolvimento econômico, por exemplo. Tal maleabilidade pode ser útil para captar o comportamento dinâmico do IPCA e da própria Selic, sempre garantindo a justa remuneração ao credor, sem representar onerosidade excessiva ao devedor.
Isso é, a adoção da taxa de juros moratórios de forma flexível impõe maior segurança jurídica, pois evita que o devedor ora tenha maior, ora tenha menor incentivo para efetivar o pagamento, a depender do patamar dos prêmios pagos pelo Tesouro e das definições, macroeconômicas, do CMN.
Ademais, o projeto estabelece que os juros serão calculados pela taxa legal vigente na data do termo inicial da fluência dos juros e incidirão, proporcionalmente ao tempo decorrido, com capitalização anual, até o pagamento efetivo. Trata-se de inovação relevante, por dois motivos. O primeiro é a fixação do momento fotográfico dos juros: a taxa legal é aquela calculada no termo inicial da sua fluência. Tal fixação da taxa resolve uma das críticas oponíveis à utilização da taxa Selic, que é justamente sua imprevisibilidade futura, ao longo de sua incidência. O segundo aspecto é a previsão, ope legis, de capitalização dos juros, o que tende a representar uma superação à Súmula/STF nº 1218.
À guisa de conclusão, é possível entender, em uma leitura preambular, que o projeto, no ponto analisado, parece bastante positivo, uma vez que tenta equacionar todos os benefícios da utilização ou da Taxa Selic, ou do somatório de 1% ao mês com a atualização monetária, representando uma possível solução para o imbróglio judicial há muito posto.
Com efeito, ao optar pela segregação entre correção monetária e juros, o projeto, embora caminhe na contramão da solução adotada pela Emenda Constitucional nº 113/2021, soluciona o problema do cálculo da correção da dívida em caso de inícios diferentes de contagem da atualização monetária e dos juros moratórios – o que é particularmente relevante para obrigações ilíquidas.
Ademais, ao manter o indexador econômico – o prêmio extrainflacionário dos títulos do Tesouro IPCA+ –, a proposição veda que a correção das dívidas civis se descole da realidade econômica do mercado financeiro, que é justamente a principal preocupação com a aposição artificial de uma taxa de juros de 1% ao mês, que, por seu absolutismo, é insensível a quaisquer variações econômicas.
Com efeito, em cenários de Selic a 2% ao ano (2020), os juros civis seriam de 1% ao mês; em cenários de Selic a 14,25% ao ano (2015 e 2016), os juros civis seriam de 1% ao mês; em cenários de Selic a 26,5% ao ano (2003), os juros civis seriam de 1% ao mês. Rememore-se: nos últimos 10 anos, a Selic média foi de cerca de 9,50% ao ano; aumentando-se o leque para os últimos 20 anos, a taxa passaria à média de 11,26%9. Ou seja, os juros pré-fixados, embora gozem da intrínseca previsibilidade, tendem a não ser sensíveis às efetivas mudanças do cenário econômico nacional, ora representando uma supervalorização dos créditos civis (em regra), ora representando sua desvalorização (em cenários hiperinflacionários, em que a Selic é elevada para a contenção da inflação no país).
Assim, seria evitada a criação artificial de uma instância de investimento: os processos judiciais, cujos juros e atualização monetária poderiam rentabilizar muito melhor do que qualquer outro investimento seguro.
Portanto, referido projeto de lei, que hoje se encontra na Câmara dos Deputados, tende a ser hábil para endereçar adequadamente a discussão posta. Ele é a melhor solução possível? Não se sabe dizer. Só o tempo dirá. Na análise desta autora, dadas as outras opções aparentemente disponíveis no cardápio, pode se tratar de uma boa proposta legislativa, no aspecto ora analisado. Eventuais distorções podem ser corrigidas e mais bem discutidas durante o processo legislativo, com a oitiva dos segmentos interessados.
Um último apontamento é viável: também é possível que surja alguma boa solução no âmbito da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão e em funcionamento no Senado Federal. Até o momento, o colegiado de juristas parece propor que “quando os juros moratórios não forem convencionados ou assim forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa mensal de 1% ao mês”, aumentáveis até o dobro em caso de convenção específica10. O texto, contudo, ainda não é definitivo.