A controvérsia acerca da correção das dívidas civis no Brasil: Parte I – Aproximação do tema e julgamento do REsp nº 1.795.982/SP
Por Izabella Ribeiro Xavier
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Antes de se expor a controvérsia relacionada à correção das dívidas civis no Brasil, é preciso que se tenha clareza do seu significado.
O inadimplemento deve ser entendido como o não cumprimento dos deveres obrigacionais por aquele que tinha o dever de fazê-lo. Do inadimplemento, que pode ser absoluto ou relativo, deriva o que podemos nomear genericamente de dívida. Se circunscrita ao ambiente do direito privado, podemos categorizá-la como dívida civil – a qual, sobretudo em razão de aspectos intrinsecamente orçamentários, guarda profundas diferenças em relação às dívidas públicas, submetidas ao regime especial de pagamento constitucionalmente estabelecido.
Havendo uma dívida civil, é certo que se deve discutir sobre a correção dos seus valores, seja em razão da corrosão inflacionária, seja em razão da necessidade de aposição de uma espécie de penalidade pelo inadimplemento obrigacional. Daí surgem, respectivamente, as figuras da atualização monetária e dos juros moratórios.
A atualização monetária tem por objetivo a recomposição, no tempo, do valor da moeda em que se expressa determinada obrigação pecuniária, como modo de compensar a inflação do período. Por ser um critério de manutenção do valor real, a atualização monetária é entendida, majoritariamente, como o próprio principal da dívida. Sua incidência é mensal. Embora o índice oficial de atualização monetária seja o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido mensalmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é sabido que os Tribunais adotam diferentes índices no Brasil: há os que optam pelo próprio IPCA, mas também há aqueles que usam o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) e o Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M). Ou seja, não há homogeneidade no tratamento entre os diferentes Tribunais brasileiros.
A seu turno, os juros são acessórios, ou seja, frutos civis produzidos pelo principal, que é o capital (é o preço de uso do capital). Quanto à sua função, os juros podem ser classificados em compensatórios/remuneratórios ou moratórios. Os primeiros são os frutos produzidos pelo capital, utilizado por um terceiro, que não seja o proprietário (ex.: juros pagos pelo banco nas aplicações financeiras). Independem de culpa e necessitam de expressa previsão contratual, salvo nas hipóteses de mútuo feneratício (com finalidade econômica), em que são presumidos (art. 591 do CC/02). Por sua vez, os moratórios são devidos na hipótese de inadimplemento culposo, relativo (mora) ou absoluto, do devedor. Independem de prova do prejuízo ou previsão contratual.
Dado esse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de sua Corte Especial, vem se debruçando sobre o tema há muito tempo. Mais recentemente, desde dezembro de 2022, entre adiamentos, inclusões e retiradas de pauta, o Tribunal decidirá no julgamento do REsp nº 1.795.982/SP (eleito ao caráter de recurso repetitivo) acerca da possibilidade de se aplicar a taxa Selic para a correção de dívidas civis oriundas de condenações judiciais, em detrimento do modelo de atualização monetária somada aos juros de mora.
Em rigor, desde o julgamento do EREsp nº 727.842/SP, em 2008, o STJ entende que, “atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – Selic, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)”.
O cerne do referido entendimento repousa na ideia de que, quando alguém inadimple uma obrigação, ele tenha de pagar, a título de encargos moratórios, aquilo que o dinheiro, parado, rende em um país, o que é representado pela taxa Selic no Brasil. O objetivo é impedir que o credor sofra prejuízo e que o devedor, com astúcia, lucre com aplicações financeiras durante o período de inadimplência.
Posteriormente, o STJ esclareceu que, nas condenações posteriores à entrada em vigor do Código Civil de 2002, aplica-se a Taxa Selic, que é composta de juros moratórios e de atualização monetária. Ou seja, a Selic seria utilizada para a final correção das dívidas civis no Brasil. Trata-se do cenário hoje aplicável também às discussões que envolvem a Fazenda Pública de forma geral, em razão da pacificação do tema pelo art. 3º da Emenda Constitucional nº 113/2021, recentemente declarado constitucional pelo STF no bojo da ADI nº 7.047/DF.
Contudo, embora oriundo da Corte Especial do Tribunal, referido entendimento não é sequer fielmente seguido pelas Turmas de Direito Privado do STJ, que ora procedem à distinção do precedente, ora parecem pretender a sua superação. Assim, o referido REsp nº 1.795.982/SP se insere no importante contexto de necessária pacificação da questão, cujo potencial impacto é vastíssimo.
O relator do recurso, Ministro Luis Felipe Salomão, entende não ser o caso de aplicação da Taxa Selic. Para o Ministro, “para as dívidas civis, o melhor critério é mesmo a utilização de índice oficial de correção monetária – que, em regra, consta da tabela do próprio tribunal local – somado à taxa de juros de 1% ao mês (ou 12% ao ano), na forma simples, nos termos do disposto no parágrafo 1º do artigo 161 do Código Tributário Nacional”. O entendimento foi acompanhado pelo Ministro Humberto Martins.
A seu turno, e em divergência, o Ministro Raul Araújo defende a adoção da taxa Selic, para que não se inviabilizem negócios produtivos no Brasil. Para o Ministro, seria irreal cogitar que débitos judiciais sejam corrigidos monetariamente por índices oficiais de inflação, acrescidos de juros moratórios de 1% ao mês, o que é substancialmente maior do que a média histórica mensal da taxa Selic1, adotada como parâmetro para investimentos no mercado financeiro. Para o Ministro, isso poderia gerar uma espécie de investimento em débitos judiciais, criando um mercado secundário de valorização do capital, mais rentável que investimentos em títulos de renda fixa. O entendimento foi acompanhado pelo Ministro João Otávio de Noronha.
Na sequência do julgamento, o Min. Humberto Martins seguiu o voto do relator e o Min. Benedito Gonçalves pediu vista. O julgamento está previsto para continuar na sessão do dia 06.03.2024.
Vê-se que o julgamento, portanto, tende a ser bastante disputado, sobretudo por ser antiga a polêmica sobre a taxa legal de juros no Brasil, em especial após a vigência do Código Civil/02. A doutrina civilista, representada na figura de Flávio Tartuce2, relembra que o art. 1.062 do CC/16 determinava que a taxa de juros moratórios fosse de 6% ao ano, quando não convencionada outra. Por sua vez, a Lei da Usura, de 1933, permite que os juros convencionais sejam de até o dobro da taxa legal: portanto, os juros convencionais poderiam atingir patamar de 12% ao ano.
A CRFB/88, na redação original de seu art. 192, § 3º, dispunha que “as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”.
Tal dispositivo foi tido pelo Supremo Tribunal Federal como não autoaplicável, ou seja, dependente de regulamentação por lei complementar (ADI nº 4/DF, entendimento posteriormente ratificado pela Súmula/STF nº 648). O dispositivo, contudo, sem ter ocorrido edição de lei para regulamentá-lo, foi revogado pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003. Assim, nunca chegou a produzir efeitos.
Com a edição do Código Civil de 2002, a locução “a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”3 gerou polêmica na doutrina por sua falta de operabilidade. Com efeito, passou-se a se questionar: a taxa de juros seria a de 1% ao mês, prevista no Código Tributário Nacional, ou seria a Taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia)?
No âmbito da doutrina do Direito Civil, entende-se, majoritariamente, que a Taxa Selic não tem natureza jurídica de taxa de juros, na medida em que se trata de taxa de remuneração por escolha de política macroeconômica. Se fosse entendida como a taxa de juros, demandaria um desconto, em segunda etapa do cálculo, de fração do acumulado, na medida em que poderia haver sobreposição entre a taxa de juros e o índice de atualização monetária, o que levaria à inoperabilidade do sistema.
Assim sendo, na doutrina do Direito Civil, defende-se que a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, um por cento ao mês (Enunciado nº 20, da I Jornada de Direito Civil). Essa seria a taxa adequada para o sistema de juros simplesmente por ser taxa de juros, e não algo híbrido que foge da categoria jurídica em questão.
Assim, defende a maior parte da doutrina que a utilização da taxa Selic como índice de apuração dos juros legais não seria juridicamente segura, porque impediria o prévio conhecimento dos juros; não seria operacional, porque seu uso seria inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente atualização monetária – que podem ter distintos termos iniciais de incidência –; poderia ser incompatível com a regra do art. 591 do Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros.
Por outro lado, o argumento condutor para chancelar a eventual utilização da taxa de juros atrelada à Selic é, geralmente, econômico: evitar ônus excessivos aos devedores e privilégios desmedidos aos credores, na medida em que uma correção representada pelo somatório entre 1% de juros e a respectiva inflação mensal poderia criar distorções financeiras. Trata-se, assim, quase que de um imperativo de índole econômica, que acabaria sobrepujando a discussão jurídica subjacente.
Ou seja, a discussão é complexa e, dado o não insulamento do Direito, envolve questões eminentemente econômicas, na medida em que pode impactar na gestão de negócios no Brasil. Com efeito, estimativa feita pela Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais no âmbito do referido julgamento indica que uma dívida de R$ 10 mil corrigida a partir de 1º de janeiro de 2010 chegaria, em 30 de novembro de 2022, a R$ 30,1 mil pela Selic e R$ 53,9 mil se aplicado 1% ao mês. Ou seja, uma diferença da ordem de 79%.
É certo que, juridicamente, dever-se-iam conceber os juros moratórios como uma efetiva penalização em razão do inadimplemento obrigacional, ao passo que a atualização monetária representaria um aspecto inflacionário diverso, de mera manutenção do valor real da prestação. Contudo, diante de tão discrepante cenário, também é certo que os aspectos econômicos subjacentes devem, sim, ser considerados pelo STJ na análise da questão, para que não se crie, artificialmente, uma espécie de investimento judicial, o que poderia redundar, em última análise, e a pretexto de dissuadir o inadimplemento das obrigações, em um verdadeiro crescimento do descumprimento obrigacional, visto que concernente em quantias efetivamente impagáveis.
Apresentada a questão e os endereçamentos possíveis, resta-nos acompanhar, de modo vigilante, a conclusão a ser adotada pela Corte de uniformização, considerando a influência da decisão em milhares de processos em curso, dado inclusive destacado na fase de sustentações orais, em que se noticiou o impacto em cerca de 6 milhões de demandas.
Na segunda parte deste artigo, far-se-á uma análise diversa: e se, além da pretensa pacificação do ponto pela via jurisprudencial – o que, como se viu, está razoavelmente longe de ocorrer, dadas as intrínsecas discussões sobre o tema –, se cogitasse da solução legislativa para o tema? Assim sendo, a próxima seção abordará o escopo do PL nº 6.233/2023, apresentado pelo Presidente da República, sob o rito da urgência constitucional, como uma alternativa à questão, buscando a sua definitiva pacificação.