Ação Rescisória Atemporal? A análise da constitucionalidade dos artigos 535, §8º, e 525, §15º, do CPC em pauta no STF 

Por Gabriel Melo e Luísa Lopes

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem em pauta a análise da constitucionalidade dos artigos 535, §8º[1], e 525, §15º[2], do Código de Processo Civil (CPC), dispositivos que permitem a impugnação de sentenças transitadas em julgado quando fundadas em normas posteriormente declaradas inconstitucionais pelo próprio STF. Trata-se de exceções à regra do prazo decadencial de dois anos prevista no art. 975 do CPC.

A referida análise ocorre de forma conjunta em três processos: Ação Rescisória (AR) nº 2876[3], que discute o prazo para a propositura da ação rescisória após decisão do STF no contexto da anistia concedida a cabos da Aeronáutica; a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 615[4], que trata da extensão indevida da Gratificação de Atividade de Ensino Especial a professores do Distrito Federal; e o Recurso Extraordinário (RE) nº 586068[5], que examina a possibilidade de anulação de decisões definitivas dos Juizados Especiais que contrariem precedentes da Suprema Corte.

Após o voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do AR nº 2876, proferido em 5 de abril de 2024, — no qual resolveu a presente questão de ordem, para declarar a inconstitucionalidade, com efeitos ex nunc, da expressão “cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal“, constante nos referidos dispositivos,  bem como procedendo à modulação dos efeitos da decisão para que sua aplicação se restringisse às ações rescisórias propostas após a publicação da ata do julgamento —, o processo foi destacado pelo Ministro Presidente Luís Roberto Barroso.

O tema tem sido objeto de intensos debates doutrinários e jurisprudenciais, sobretudo pelo que foi denominado pelo ministro Luiz Fux como “ação rescisória atemporal”[6], ao sustentar que a possibilidade de rescisão de decisões transitadas em julgado após um lapso temporal indefinido restringiria excessivamente a garantia fundamental da coisa julgada, a ponto de comprometer seu núcleo essencial.

A questão central gira em torno da tensão entre a estabilidade das decisões judiciais e a necessidade de assegurar a supremacia da Constituição. De um lado, tem-se a coisa julgada, alicerce da segurança jurídica. De outro, a manutenção de pronunciamentos judiciais fundados em normas inconstitucionais gera evidente conflito com a supremacia do texto constitucional e o dever de coerência do ordenamento jurídico.

Críticos dos dispositivos questionados sustentam que a ampliação irrestrita do prazo para rescindir sentenças desconsidera a previsibilidade necessária à estabilidade das relações jurídicas. Nesse sentido, aponta-se o risco de insegurança generalizada, caso se abra margem para impugnações indefinidas, sobretudo em matérias sensíveis como execução fiscal e relações contratuais de longa duração.

José Rogério Cruz e Tucci adverte que tais dispositivos “colocam em xeque a segurança jurídica, uma vez que o pronunciamento da excelsa Corte pode sobrevir muitos anos após o trânsito em julgado[7]. Corroborando essa preocupação, Beclaute Oliveira Silva assinala que “abre-se um problema grave para a segurança jurídica, já que o jurisdicionado terá uma coisa julgada que pode vir a ser rescindível, caso o STF profira decisão de inconstitucionalidade anos depois.”[8]

Por outro lado, os defensores da tese que argumentam a constitucionalidade dos dispositivos ressaltam que a intangibilidade da coisa julgada não pode servir de obstáculo à prevalência da Constituição. Nesse contexto, a previsão de mecanismos excepcionais para a revisão de sentenças fundadas em normas posteriormente declaradas inconstitucionais garantiria a higidez da ordem jurídica, corrigindo situações que, de outra forma, perpetuariam a aplicação de normas incompatíveis com a Carta Magna.

Nesse sentido, Carlos de Araújo Moreira defende que “ainda que o princípio da segurança jurídica tivesse o alcance amplíssimo e extremado que refutamos, é de se ressaltar que, em hipotética situação de conflito com o princípio da igualdade, gerada pela existência de coisas julgadas contrárias à Constituição hábeis a romper da uniformidade de nosso ordenamento jurídico, não deveria a segurança jurídica prevalecer”. [9]

O julgamento, inicialmente previsto para o dia 27 de março, foi adiado e incluído na pauta do Plenário para deliberação em 23 de abril. A decisão do STF terá repercussão significativa na definição dos contornos da coisa julgada e na possibilidade de revisão de sentenças definitivas, com impactos profundos na sistemática processual civil brasileira.


[1] Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir: (…) § 8º Se a decisão referida no § 5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

[2] Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523 sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação. (…) § 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

[3] O mérito da ação trata de pedido da União sobre anulação de portaria do Ministério da Justiça que reconheceu a condição de anistiado político a um cabo da Aeronáutica. O processo busca anular uma decisão de 2016 da 1ª Turma do STF, que impediu a revisão da anistia.

[4] O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) declarou constitucional a restrição ao pagamento, estabelecida em uma das leis distritais. O governo então alegou ao STF que os Juizados rejeitaram as contestações das sentenças sob o argumento de que a decisão do TJDFT não poderia desconstituir coisa julgada.

[5] A discussão do RE nº 586068 é sobre o entendimento fixado pelo STF de que decisões definitivas de Juizados Especiais que conflitarem com julgados do STF podem ser anuladas.

[6] O ministro Luiz Fux, no julgamento do Tema 725/STF, sustentou que o prazo deveria ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença original, e não do precedente posterior, pois: “Essa ação rescisória pode se tornar atemporal, sem prazo, o que gera uma insegurança jurídica”.

[7] CRUZ E TUCCI, José Rogério. Comentários ao art. 525. In: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHA Revista dos Tribunais Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais 2016. t. VIII, p. 307.

[8] SILVA, Beclaute Oliveira. Comentários ao art. 525. In: CAMARA, Helder Moroni (Coord.). Código de Processo Civil comentado. São Paulo/Lisboa: Almedina, 2016. p. 708.

[9] MOREIRA, Carlos de Araujo. Coisa Julgada e Igualdade: novo código, velhos problemas. In:Revista da PGFN – Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – v. 9, n. 1. Brasília: PGFN, 2016, p. 43


Ação Rescisória Atemporal? A análise da constitucionalidade dos artigos 535, §8º, e 525, §15º, do CPC em pauta no STF