Julgamento Parcial de Mérito: Aspectos Práticos e Teóricos à Luz da Sistemática dos Recursos Repetitivos e dos IRDRs

Por Ana Carolina Ipanema e Rafaela Delmás

O julgamento parcial de mérito é uma ferramenta processual relevante no sistema jurídico brasileiro, permitindo ao juiz decidir sobre parte do mérito da causa antes da conclusão integral do processo. No contexto em que o processo fica suspenso devido à tramitação de um Recurso Repetitivo ou de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), a aplicação desse instituto ganha especial relevância.

PREVISÃO LEGAL

A previsão do julgamento parcial encontra respaldo no art. 356 do CPC, que permite a prolação de decisão parcial de mérito nas hipóteses em que um ou mais pedidos se revelem incontroversos ou estiverem em condições de imediato julgamento.

Com a referida previsão legal, o legislador buscou não apenas inovar, mas também proporcionar mecanismo que permita uma gestão mais eficiente do tempo de duração da lide, exatamente como determina o art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal (CF), que assegura aos jurisdicionados a razoável duração do processo, além de também encontrar fundamento nos princípios da celeridade (art. 4° do CPC) e da eficiência da jurisdição (art. 37 da CF e 8° do CPC).

De acordo com a professora Teresa Arruda Alvim, o método sistemático de interpretação dos dispositivos “indica que o artigo 356 não é exaustivo e leva à inexorabilidade de que o tribunal decida, por exemplo, a parcela do recurso que contém matéria que pode ser julgada independentemente do que se decida a respeito da questão de direito em função da qual terá havido a afetação do recurso” [1].

Isto é, esse mecanismo pode ser utilizado nas hipóteses em que parte do mérito da causa esteja madura para julgamento, independentemente de outras estarem afetadas para apreciação em sede de recursos repetitivos ou incidentes de resolução de demandas repetitivas, permitindo uma resposta imediata do judiciário sobre aquele ponto que é passível de ser julgado.

Neste sentido, em muitos casos é razoável que a demanda seja cingida, ainda que parcialmente, principalmente quando há uma integral independência entre as matérias discutidas.

SUSPENSÃO DO PROCESSO PELA SISTEMÁTICA DOS RECURSOS REPETITIVOS OU IRDR

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e os Recursos Repetitivos são institutos que visam uniformizar a jurisprudência e garantir a isonomia na aplicação do direito, quando há multiplicidade de ações sobre a mesma questão jurídica.

O art. 982, I, do CPC prevê que, instaurado o IRDR, os processos individuais ou coletivos que versem sobre a mesma questão jurídica devem ser suspensos até o julgamento do incidente. Da mesma forma, o art. 1.037, II, do CPC determina a suspensão dos processos que discutem a mesma questão jurídica afetada pelo recurso repetitivo.

Desse modo, quando há partes do pedido que podem ser decididas independentemente da questão jurídica objeto do incidente ou do recurso repetitivo é perfeitamente cabível, e até mesmo recomendável, que seja julgado parcialmente o mérito sobre os pedidos não afetados, justamente para que as partes não sejam prejudicadas por uma eventual demora nas questões pendentes de apreciação.

Nesses casos, o juiz pode resolver parcialmente a lide em relação aos pontos que não estão diretamente ligados à matéria afetada pelo incidente de resolução de demandas repetitivas ou recurso repetitivos, e determinar a suspensão do processo apenas quanto às questões remanescentes. A jurisprudência dos Tribunais Estaduais, bem como do Superior Tribunal de Justiça, vem caminhando exatamente nesse sentido[2].

Nessa linha de ideias, para fundamentar a possibilidade do julgamento parcial nesses casos, consolidou-se o Enunciado 205 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, que assim dispõe: “havendo cumulação de pedidos simples, a aplicação do art. 982, I e §3.º, poderá provocar apenas a suspensão parcial do processo, não impedindo o prosseguimento em relação ao pedido não abrangido pela tese a ser firmada no incidente de resolução de demandas repetitivas”.

Chama-se atenção, contudo, para o fato de que, quando há julgamento parcial do mérito em primeiro grau, este deve ser realizado por meio de decisão interlocutória, devendo ser observado que o recurso cabível em face da referida decisão será o agravo de instrumento, a teor do que dispõem os arts. 356, §5º[3], e 1.015, II[4], do CPC.

Inclusive, este foi o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AgInt no AREsp n°1643374/DF, segundo o qual, ainda que a decisão seja nomeada “sentença”, pelo regramento expresso do § 5º, do art. 356, do CPC, o recurso cabível é o agravo de instrumento, sob pena de não conhecimento do recurso “por erro grosseiro”[5].  

Em se tratando de decisão monocrática proferida em sede recursal, além da necessidade de interposição de agravo interno[6] para que a questão seja submetida ao colegiado, será possível prosseguir com a interposição de recurso especial e recurso extraordinário para combater o acórdão que dele advier.

DESDOBRAMENTOS DO JULGAMENTO PARCIAL

Já em relação aos desdobramentos relacionados ao julgamento parcial de mérito, diante do entendimento a respeito da possibilidade de fracionamento dos pedidos formulados em uma mesma demanda, passou-se a discutir a existência de múltiplas decisões de mérito e formação da coisa julgada em vários momentos ao longo do processo, principalmente quando verificada a hipótese do art. 356, I, do CPC, que trata dos pedidos incontroversos.

Sobre o ponto, verifica-se que foi admitido um novo conceito de coisa julgada que, portanto, guarda um caráter progressivo, não sendo necessário que se aguarde o trânsito em julgado em sua integralidade, até mesmo para prosseguir com a execução da fatia que já restou decidida. O que se percebe é um abandono do princípio da unidade da sentença, que vigorava no Código de Processo Civil de 1973.

Nessa linha argumentativa, apesar de não ser permitida a prolação de duas sentenças sobre o mesmo pedido, eis que terminantemente vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro[7], se admite a prolação de mais de uma decisão no processo, com caráter terminativo, em relação à parte apreciada.

O próprio e. Superior Tribunal de Justiça mudou o seu entendimento sobre o tema, o que pode ser atestado através de um comparativo entre dois trechos de acórdãos proferidos pela Corte Especial, sendo o primeiro prolatado na vigência do CPC anterior e o segundo já no atual código:

“É incabível o trânsito em julgado de capítulos da sentença ou do acórdão em momentos distintos, a fim de evitar o tumulto processual decorrente de inúmeras coisas julgadas em um mesmo feito”.[8]

“3. O art. 356 do CPC/2015 prevê, de forma clara, as situações em que o juiz deverá proceder ao julgamento antecipado parcial do mérito. Esse preceito legal representa, portanto, o abandono do dogma da unicidade da sentença. Na prática, significa dizer que o mérito da causa poderá ser cindido e examinado em duas ou mais decisões prolatadas no curso do processo. Não há dúvidas de que a decisão interlocutória que julga parcialmente o mérito da demanda é proferida com base em cognição exauriente e ao transitar em julgado, produz coisa julgada material (art. 356, § 3º, do CPC/2015).”.[9]

Na mesma linha, em outro julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, até mesmo anterior, a Terceira Turma já havia concluído “que a questão apreciada na decisão agravada e não impugnada nas razões do recurso não pode ser analisada por força da preclusão consumativa e da coisa julgada[10]. Este mesmo posicionamento também já foi encampado pela Quarta Turma, quando enfrentou questão referente aos limites do efeito devolutivo e a coisa julgada sobre o capítulo não impugnado[11].

Em outras palavras, apesar do sobrestamento em razão do IRDR, Recursos Repetitivos ou qualquer causa que justifique a necessidade de julgamento de somente um dos pedidos, é importante que, em caso de irresignação, a decisão parcial de mérito seja impugnada por meio do recurso cabível – o agravo de instrumento –, sob pena de consumação da coisa julgada sobre aquele ponto específico da matéria debatida.

Para os que defendem esse posicionamento, a interpretação dada pelo Código de Processo Civil de 2015 à viabilidade do julgamento parcial de mérito pode ser observada sob vários ângulos e em diversos dispositivos do referido diploma legal, permitindo-se concluir que os conceitos sobre efeitos da decisão, mérito, coisa julgada e efeito suspensivo são dinâmicos.

São exemplos de dispositivos que seguem essa linha de ideias: os arts. 502 e 503, segundo os quais a coisa julgada está vinculada ao termo decisão e não ao conceito de sentença; os arts. 523 e 524, que tratam da possibilidade de cumprimento definitivo de decisão envolvendo quantia ou parcela incontroversa; o art. 702, §7º, em que se admite os embargos à ação monitória parciais, com a constituição de título executivo de parcela incontroversa e; o art. 966, caput e §3º, que trata sobre a possibilidade de a ação rescisória ser ajuizada em face de somente um dos capítulos do julgado a ser rescindido[12].

Como consequência lógica, a falta de irresignação recursal e a estabilidade de formação da coisa julgada abreviando o início do cumprimento do capítulo já decidido, permite o cumprimento provisório e definitivo simultaneamente, ou seja, sem o trânsito em julgado total do decisum. Sobre isso, também já se manifestou o STJ, em julgado recente, a partir do debate acerca da possibilidade de coisa julgada parcial e progressiva, em que foi adotado o seguinte entendimento[13].

Sendo assim, admitindo-se o julgamento parcial de mérito, abarcado por todas as consequências inerentes a esse posicionamento – tais como a possibilidade de várias decisões de mérito em um mesmo processo e a existência de cumprimentos de sentença concomitantes –, para grande parte da doutrina e jurisprudência resta superado o princípio da unidade da sentença.

De qualquer modo, o julgamento parcial de mérito em processos suspensos por IRDR ou recurso repetitivo deve ser utilizado de forma cuidadosa, para evitar decisões conflitantes e garantir a coerência e a segurança jurídica. Quando assim utilizado, mostra-se como a ferramenta perfeita para garantir uma prestação jurisdicional adequada.


[1] Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-jun-11/teresa-alvim-cpc-abre-debate-suspensao-acoes-repetitivos/> Acesso em 29 jul. 2024.

[2] TJSP, Dje 01 abr. 2020, AC 1027968-16.2017.8.26.0576, 29ª Câmara de Direito Privado, Des. Rel. Francisco Carlos Inouye Shintate; TJAM, Dje 22 ago. 2019, AC 0000147-75.2017.8.04.2901, Terceira Câmara Cível, Des. Rel.  João de Jesus Abdala Simões; STJ, Dje 12 nov. 2022, AgInt no AREsp n°1643374/DF, Min. Rel. Ricardo Villas Bôas Cueva;

[3] CPC, “Art. 356. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: § 5º A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento”.

[4] CPC, “Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre: II – mérito do processo;”.

[5] STJ, Dje 12 nov. 2022, AgInt no AREsp n°1643374/DF, Min. Rel. Ricardo Villas Bôas Cueva;

[6] Nesse sentido, confira-se o teor do Tema 294, do Supremo Tribunal Federal: “Cabimento de agravo interno contra decisão monocrática proferida no âmbito dos Juizados Especiais”. Tese firmada: “Cabe o julgamento monocrático no âmbito dos Juizados Especiais, desde que possível sua revisão pelo Órgão Colegiado” [faz sentido manter essa nota de rodapé? Tenho dúvidas, porque ela é voltada para Juizados e o foco do artigo não é esse].

[7] Jurisprudência pacífica de que a segunda sentença deve ser anulada: TJAM, Dje 26 mar. 2018, AP 0227147-17.2009.8.04.0001, 1ª Câmara Cível, Des. Rel. Lafayette Carneiro Vieira Júnior; TJMG, Dje 24 jan. 2022, AC 100241203-15.6.19.001, 4ª Câmara Cível, Des.  Rel. Pedro Aleixo.

[8] STJ, Dje 01 set. 2014, REsp n. 736.650/MT, Corte Especial, Min. Rel. Antônio Carlos Ferreira;

[9] STJ, Dje 14 mai. 2021, REsp 1.845.542, Terceira Turma, Min. Rel. Nancy Andrighi;

[10] STJ, DJe 29 mar. 2016, AgRg no AREsp 769.892/PR, Terceira Turma, Min. Rel. João Otávio de Noronha;

[11] STJ, Dje 13 abr. 2021, REsp 1.909.451/SP, Quarta Turma, Min. Rel. Luis Felipe Salomão;

[12] Ponderações realizadas com base no posicionamento de José Henrique Mouta Araújo, em artigo publicado digitalmente. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2023-ago-12/mouta-araujo-coisa-julgada-parcial-cumprimento-sentenca/> Acesso em 30 jul. 2024.

[13] STJ, Dje 27 abr. 2023, REsp 2026926/MG, Terceira Turma, Min. Rel. Nancy Andrighi;

Julgamento Parcial de Mérito: Aspectos Práticos e Teóricos à Luz da Sistemática dos Recursos Repetitivos e dos IRDRs