A compatibilidade do princípio da consensualidade com o Direito Eleitoral
Por Izabella Ribeiro Xavier
Embora muito já se fale sobre a consolidação do princípio da consensualidade no ordenamento jurídico de forma geral, sua aplicação ao campo do Direito Eleitoral pode não parecer óbvia para todos.
Diante disso, por um lado, é possível afirmar que a mencionada construção é decorrente direta do princípio da eficiência, positivado no caput do art. 37 do texto constitucional por meio da Emenda Constitucional nº 19/1998. A eficiência está atrelada ao atingimento do interesse público a partir da otimização dos recursos disponíveis[1]. O consenso, por sua vez, está atrelado à própria materialização da eficiência, dada a possibilidade de se pôr fim a determinado conflito, partindo-se da conjugação dos interesses das partes – e, com isso, otimizar o recurso mais limitado de todos: o tempo dos envolvidos[2]. Aplicando-se ambas as ideias ao Poder Judiciário, é de conhecimento geral que o tempo de tramitação das demandas judiciais não é exatamente curto[3], tornando cansativa a trajetória de litigância das partes, mesmo na seara eleitoral, tipicamente conhecida pela celeridade decisória.
Nesse sentido, o atual Código de Processo Civil positivou a ideia de que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” (art. 4º), dispositivo pensado justamente para tutelar não só o tempo dispendido no âmbito do processo de conhecimento, mas também no processo executivo – afinal, todos querem ganhar e também levar, sem que isso custe anos de trâmite de processo judicial.
Para tanto, e considerando sobretudo a norma de conexão entre a disciplina do processo civil em sintonia com as normas constitucionais (art. 1º do CPC), é certo que a busca pela eficiência jurisdicional deve passar pela promoção consensual dos conflitos, com o estímulo de métodos como a conciliação e a mediação por juízes, advogados e membros da Defensoria e Ministério Público (art. 3º, § 2º). Referida concepção tem como origem o ideal de Estado consensual, calcado na busca constante da solução negociada das lides[4]. A despeito disso, é forçoso reconhecer que o consensualismo na Administração Pública ainda passa por processo de evolução, a depender do âmbito de aplicação e dos interesses envolvidos, em constante amadurecimento da concepção de indisponibilidade do interesse público[5], que, antigamente, implicava dizer que o Estado jamais poderia transigir sobre seus interesses, já que indisponíveis.
Hoje, já estamos com a discussão bastante mais avançada e sofisticada, a qual encontra um novo ponto de inflexão quando se investiga o consensualismo eleitoral, que, além de versar sobre interesses públicos lato sensu, tangencia o próprio primado democrático, uma das pedras de toque do ordenamento jurídico brasileiro.
Para os fins almejados no presente artigo, no entanto, a questão que se coloca é a seguinte: considerando o papel institucional da Justiça Eleitoral, que notadamente não se limita a organizar eleições, mas sim a proteger os direitos políticos dos cidadãos e garantir a higidez do Estado Democrático de Direito em si – a partir do seu sistema representativo de governo –, seria o referido princípio da consensualidade aplicável aos processos eleitorais?
A resposta imediata seria pela aplicação automática do princípio, considerando as normas de conexão do Código de Processo, a própria norma de aplicação supletiva das normas ao processo eleitoral (art. 15) e a inclusão da Justiça Eleitoral como órgão do Poder Judiciário (art. 92, V, da Constituição Federal). Ocorre, entretanto, que o órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, por meio da sua Resolução/TSE nº 23.478/2016 – que estabeleceu diretrizes gerais para a aplicação do CPC/15 no âmbito da Justiça Eleitoral –, positivou que “não se aplicam aos feitos eleitorais as regras relativas à conciliação ou mediação previstas nos arts. 165 e seguintes do Novo Código de Processo Civil” (art. 6º) e “na Justiça Eleitoral não é admitida a autocomposição, não sendo aplicáveis as regras dos arts. 190 e 191 do Novo Código de Processo Civil” (art. 11).
Naturalmente, embora não se tenha conhecimento público das razões expressas para tanto, cogita-se que a explicação razoável para tais exclusões de aplicabilidade seria a natureza dos direitos tutelados pela Justiça Eleitoral, que, ao menos em tese, não comportariam qualquer tipo de negociabilidade, por serem indisponíveis e caros ao Estado Democrático de Direito, sendo essa também a avaliação de quem se dispôs a tecer comentários acerca da referida Resolução[6].
Nesse contexto, a consensualidade seria incompatível com o interesse público inerente à proteção dos direitos políticos e à isonomia que deve pautar o processo eleitoral, com a garantia de igualdade aos players eleitorais, que devem ostentar o mais absoluto respeito às condutas vedadas positivas no art. 73 da Lei das Eleições[7] e demais regras eleitorais.
Com o mais alto respeito ao entendimento do TSE na citada Resolução, filia-se neste artigo à corrente doutrinária[8] que entende pelo retrocesso desse tipo de posicionamento, que parece estar um passo atrás em termos de entrega jurisdicional eficiente, ainda que se use como fundamento – não suficiente – a indisponibilidade dos direitos políticos envolvidos, considerando a pluralidade de situações práticas que demandam o emprego de técnicas consensuais para a resolução do conflito.
Com efeito, a premissa da indisponibilidade dos bens jurídicos tutelados pela Justiça Eleitoral não parece ser suficiente, e tampouco compatível com o ordenamento jurídico em sua globalidade, considerando a própria incorporação de mecanismos de negociação em contextos relacionados a bens jurídicos tradicionalmente indisponíveis, tal como nas hipóteses de colaboração premiada[9], do acordo de leniência[10] e dos acordos de não persecução (criminal[11] e cível[12]). É certo que não se está a defender a chancela obrigatória de acordos para circunstâncias absolutamente sérias e violadoras das normas eleitorais, mas tão somente a necessidade de acolhimento das regras consensuais para circunstâncias concretas que assim o permitam, bem como uma delegação de competência, num gesto de confiança institucional, aos atores envolvidos em cada caso concreto, que, dentro de sua maturidade jurídica, saberão entender se aquele caso comporta, ou não, uma negociação lato sensu.
Nesse sentido, e como forma de exemplificar a possibilidade de aplicação do princípio da consensualidade na Justiça Eleitoral, e na contramão das próprias disposições da Resolução/TSE nº 23.478/2016, a Corte Eleitoral sinalizou, em 2020, a abertura para tal tipo de arquitetura processual no âmbito do processo de Prestação de Contas nº 0000798-69.2011.6.00.0000 – cujo objeto estava relacionado à aplicação dos percentuais mínimos da verba do Fundo Partidário ao incentivo e promoção da participação feminina na política, na forma do art. 44, V, da Lei nº 9.096/1995 –, em que o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) firmou negócio jurídico processual com o Ministério Público Eleitoral (MPE), considerado como momento histórico e um marco vitorioso na política brasileira[13].
Entre outros, o referido negócio jurídico processual contou com considerandos afetos: (i) à necessidade de adoção de convenções processuais para se permitir a adequada e efetiva tutela jurisdicional aos interesses subjacentes, na forma da Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 118/2014; (ii) à legitimidade do Ministério Público para a construção de soluções autocompositivas; (iii) à adoção do princípio do autorregulamento das partes pelo CPC/15, na forma do art. 190; (iv) à aplicação não apenas subsidiária mas também supletiva do CPC aos processos eleitorais; (v) às obrigações dos partidos políticos de prestar contas, decorrentes dos princípios republicanos e da publicidade, que pressupõem transparência na arrecadação e aplicação dos recursos públicos destinados às agremiações por meio do Fundo Partidário; (v) à necessidade de se buscarem mecanismos para eliminar a sub-representação feminina na vida política brasileira; e (vi) à arqueologia da burla à isonomia material, que reflete a estrutura patriarcal que ainda rege as relações de gênero na sociedade brasileira e sua ontologia, “deturpadora do processo eleitoral isonômico”.
Vê-se, portanto, que, a despeito de o Tribunal historicamente não permitir a realização de acordos, inclusive com fundamento em sua própria Resolução, o movimento inaugurado pelo MDB e pelo MPE, em contexto político de suma importância para a paridade representativa brasileira (participação feminina na política), apenas traduz, em nossa compreensão, o feliz aceno da Justiça Eleitoral na implementação do princípio da consensualidade em suas práticas.
Apesar do referido aceno, no entanto, ainda pulsa no TSE o entendimento no sentido de afastar a possibilidade de se firmar termos de ajustamento de conduta no âmbito da Justiça Eleitoral, com fundamento na interpretação do art. 105-A da Lei nº 9.504/1997. O dispositivo será objeto de reflexão na próxima parte da presente conjunto de artigos.
[1] Juliana Palma, em sua dissertação de Mestrado, já versava sobre o caráter indeterminado do conceito de “eficiência”, em pesquisa voltada à atuação administrativa consensual: “o preceito é caracterizado pela multiplicidade de significados que decorrem da textura semântica aberta. A concretização do comando exige, assim, a adoção de uma linha de entendimento. Três relevantes interpretações do princípio da eficiência são extraídas da produção acadêmica sobre o tema: (i) a eficiência como sinônimo de ‘boa administração’, (ii) a eficiência como comando de otimização das decisões administrativas e (iii) a eficiência como dever de escolha do meio mais adequado para determinar decisões eficientes ao caso concreto” (PALMA, Juliana Bonacorsi de. Atuação administrativa consensual: estudo dos acordos substitutivos no processo administrativo sancionador. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. doi:10.11606/D.2.2010.tde-18112011-141226. Página 91).
[2] “A consensualidade, assim, apresenta-se como instrumento característico da nova Administração Pública, que valoriza a interlocução com os diversos grupos sociais e inclui os cidadãos no processo de qualificação do interesse público, inserindo a cultura do diálogo no seu relacionamento com a sociedade. A Administração pública dialógica, pautada no consenso e na concertação, e não na imposição unilateral da vontade do Estado, realiza, em última análise, o ideal de eficiência acrescido à Constituição por meio da Emenda Constitucional 19/98 (LGL\1998\67). O princípio ordena ao administrador público a busca dos melhores resultados na consecução do interesse público com o menor dispêndio de recursos possível, utilizando da melhor maneira os instrumentos que lhe estão disponíveis. A consensualidade apresenta-se, assim, como modo alternativo de exercício da pretensão punitiva estatal no âmbito dos processos administrativos sancionadores, como forma de se alcançar o interesse público com a colaboração dos atores sociais sem a imposição de penalidades que lhes seriam cabíveis diante de suas condutas e cuja aplicação, tão somente, não seria suficiente para o alcance do bem comum, não alcançando a finalidade pública almejada pela coletividade” (destaques acrescidos). In: Campos, Daniela Almeida; Mello, Shirlei Silmara de Freitas. Consensualidade como modo alternativo de exercício da pretensão punitiva estatal no processo administrativo sancionador. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | vol. 17/2021 | p. 67 – 89 | Abr-Jun/2021. DTR\2021\8941. Pág. 2.
[3] É possível ter acesso ao tempo de tramitação dos processos judiciais a partir da consulta ao anuário “Justiça em Números 2024” (ano-base 2023), de produção do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/05/justica-em-numeros-2024.pdf. Acesso em 10/06/2024.
[4] “Perfil estatal em um mundo globalizado, alude à figura do Estado consensual, que é pautado pela procura constantemente da solução negociada de seus conflitos, pois o diálogo entre sociedade e administração pública viabiliza com mais chances o cumprimento espontâneo das decisões consensuais, na medida em que há a concordância das partes envolvidas, reforçando, inclusive, a sua legitimidade (…). Essas posturas indicam a busca incessante das soluções negociadas, nas quais a consensualidade aplaina as dificuldades, maximiza os benefícios e minimiza as inconveniências para todas as partes, pois a aceitação de ideias e de propostas livremente discutidas é o melhor reforço que pode existir para um cumprimento espontâneo e frutuoso das decisões tomadas. O Estado que substituir paulatinamente a imperatividade pela consensualidade na condução da sociedade será, indubitavelmente, o que garantirá a plena eficiência de sua governança pública e, como consequência, da governança privada de todos os seus setores” (destaques acrescidos). In: Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Poder, direito e Estado: o direito administrativo em tempos de globalização. Belo Horizonte: Fórum, 2011. Págs. 142-143.
[5] MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Página 70.
[6] “Outro exemplo de incompatibilidade se verifica nos artigos 190 e 191 do CPC, que admitem a celebração de negócio jurídico-processual entre as partes. A natureza jurídica dos bens envolvidos no processo eleitoral impede a aplicação desses artigos. Como já evidenciado, estão em jogo no processo eleitoral bens jurídicos essenciais à democracia e a observância da forma procedimental prevista em lei revela garantia fundamental para os agentes do processo e também para a sociedade” (MAGALHÃES, Marcelo Cosme de Souza. Aplicabilidade do Código de Processo Civil ao processo eleitoral – comentários à resolução do TSE 23.478/2016. Suffragium – Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, Fortaleza, v. 9, n. 15/16, p. 99-116, jan./dez. 2017).
[7] “Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: I – ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária; II – usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram; III – ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado; IV – fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público; V – nomear, contratar ou de qualquer forma admitir, demitir sem justa causa, suprimir ou readaptar vantagens ou por outros meios dificultar ou impedir o exercício funcional e, ainda, ex officio, remover, transferir ou exonerar servidor público, na circunscrição do pleito, nos três meses que o antecedem e até a posse dos eleitos, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados: a) a nomeação ou exoneração de cargos em comissão e designação ou dispensa de funções de confiança; b) a nomeação para cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de Contas e dos órgãos da Presidência da República; c) a nomeação dos aprovados em concursos públicos homologados até o início daquele prazo; d) a nomeação ou contratação necessária à instalação ou ao funcionamento inadiável de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa autorização do Chefe do Poder Executivo; e) a transferência ou remoção ex officio de militares, policiais civis e de agentes penitenciários; VI – nos três meses que antecedem o pleito: a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública; b) com exceção da propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado, autorizar publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral; c) fazer pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, fora do horário eleitoral gratuito, salvo quando, a critério da Justiça Eleitoral, tratar-se de matéria urgente, relevante e característica das funções de governo; VII – empenhar, no primeiro semestre do ano de eleição, despesas com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, que excedam a 6 (seis) vezes a média mensal dos valores empenhados e não cancelados nos 3 (três) últimos anos que antecedem o pleito; VIII – fazer, na circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição, a partir do início do prazo estabelecido no art. 7º desta Lei e até a posse dos eleitos”.
[8] “(…) Apesar disso, afigura-se inadequada a absoluta vedação da autocomposição nos domínios eleitorais, como parece pretender o citado artigo 6 da Resolução TSE n. 23.478/2016. Há situações que reclamarão o emprego de técnicas de autocomposição, ainda que extrajudiciais” (destaques acrescidos). In: GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2018. Pág. 724.
[9] Art. 3º-A da Lei nº 12.850/2013.
[10] Art. 16 da Lei nº 12.846/2013.
[11] Art. 28-A do Código de Processo Penal, após inclusão pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime).
[12] Art. 17-B da Lei nº 8.429/1992, após inclusão pela Lei nº 14.230/2021.
[13] “MDB assina acordo com MPE para incentivar participação feminina na política”. Disponível em https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2020/Agosto/mdb-assina-acordo-com-mpe-para-incentivar-participacao-feminina-na-politica. Acesso em 10/06/2024.