As instituições e as crises de representatividade: o exemplo dos sistemas semipresidencialista francês
Por Soraya Nouira y Maurity e Felipe de Melo Fonte
Artigo originalmente publicado no site JOTA
Entre 6 e 9 de junho, os eleitores da União Europeia foram convocados para escolher os seus eurodeputados – representantes dos cidadãos para o Parlamento Europeu, que, em conjunto com o Conselho da União, exercem as funções legislativas do Direito europeu.
Essas eleições acontecem a cada cinco anos e são realizadas por sufrágio universal, com voto direto, em um só turno. Em particular, os eleitores franceses foram às urnas no domingo (9/6) (sábado [8/6], para os territórios franceses ultramarinos), para escolherem 81 deputados, dois a mais em comparação com o pleito de 2019, em voto proporcional de lista fechada.
O partido Rassemblement National foi o grande vencedor dessas eleições, com um total de 31,37% dos votos válidos. O RN é a nova nomenclatura do partido populista Front National (FN), que passou muito tempo sob a liderança de Jean-Marie Le Pen e de sua filha, Marine Le Pen.
Hoje, embora Marine Le Pen permaneça na vida política, a liderança é protagonizada por Jordan Bardella, de 28 anos, aparentemente, em casal com a neta de Jean-Marie Le Pen (o partido gosta de ficar em família). Mas Bardella dá um novo alento ao partido. Figura jovem e carismática, dotado da habilidade geracional de autopromoção via redes sociais. Isso permitiu “desdemonizar” a imagem que os Le Pen construíram da extrema direita ao longo dos anos.
A vitória do partido, contudo, não veio como uma surpresa. As pesquisas já indicavam que a extrema direita levaria muitos cidadãos às urnas[1], além da ascensão do partido não ser algo novo na vida política europeia e francesa[2].
Algumas explicações podem ser esboçadas para o aumento permanente dos votos para o RN. Primeiro, a taxa de absentismo para as votações europeias é alta (48,17% nessas últimas eleições)[3].
São muitos os fatores contributivos para esse quadro: natureza facultativa do voto, percepção de pequena influência do Direito Europeu no dia a dia dos franceses, baixa cobertura midiática e crise generalizada de representatividade. O absentismo, naturalmente, favorece as militâncias e os partidos mais radicais, que compreendem a importância de organizarem o voto em favor de um só partido.
Segundo, o discurso ideológico contra as políticas imigratórias francesas e europeias aliadas à escalada da sensação de insegurança convence cada vez mais. Embora, como boa surpresa, a candidata franco-palestina, Rima Hassan, tenha sido eleita, há uma sensação geral de xenofobia e islamofobia.
A surpresa, no entanto, foi o baixo percentual que o partido do atual presidente obteve. Apenas 14,60% dos votos para o Renaissance, liderado por Valérie Hayer.
Esse resultado desastroso levou alguns políticos a pedirem a demissão de Emmanuel Macron. Jordan Bardella, por sua vez, incitou o presidente a dissolver a Assemblée Nationale (o equivalente à Câmara dos Deputados) e convocar novas eleições para o Legislativo francês, para acusar a sua falta de legitimidade democrática.
Num discurso de 5 minutos, realizado no mesmo dia das eleições, o presidente francês Emmanuel Macron dissolveu a Assembleia Nacional e convocou novas eleições para 20 de junho e 7 de julho; a apenas um mês da realização das Olimpíadas. O tom parece confiante.
O presidente explica que optou por “devolver ao povo francês a escolha do futuro parlamentar da França pelo voto” para “escolher a História e não sofrê-la”[4] e, assim, aproveita para emitir algumas críticas ao avanço da extrema-direita na França e na Europa, como alerta para os riscos no cenário político e econômico do país nos próximos anos. É uma jogada de poker, quitte ou double como diriam os franceses. Arriscado, muito arriscado, mas reflete como o manejo das instituições, das “regras do jogo”[5], pode servir para resolver crises de legitimidade.
A medida tem fundamento jurídico e uma explicação política.
Do ponto de vista jurídico, o presidente se vale do artigo 12 da Constituição Francesa[6]. A França é, hoje, um regime semipresidencialista, que combina, assim, alguns mecanismos do sistema presidencialista e parlamentarista[7].
O sistema semipresidencialista inaugura a Quinta República Francesa, sob o comando de Charles de Gaulle (com alta popularidade à época) para reforçar as funções do Poder Executivo, traumatizado pelas instabilidades políticas que ocorriam nas Terceira e Quarta Repúblicas[8].
As funções do poder do presidente da República estão consubstanciadas em artigo próprio da Constituição (o art. 5º). Em suma, o Presidente é o guardião da Constituição, o árbitro para o funcionamento regular dos Poderes Públicos e da continuidade do Estado e, como Chefe de Estado, garante a independência nacional, a integridade do território e o respeito aos tratados. Além disso, concentra uma série de poderes administrativos e políticos específicos (como poderes regulamentares autônomos, a organização de referendum e outros).
Em paralelo, as funções de governo também são reforçadas, mas exercidas por um primeiro-ministro (art. 20), que determina e conduz a política da nação (o presidente não integra o governo e não pode tomar certas decisões sem o apoio de um ou mais ministros do governo). O primeiro-ministro conduz a ação do governo e, para tanto, indica os ministros de Estado e é responsável pela defesa nacional, assim como controla parcela da agenda do Parlamento (pode, por exemplo, se opor às emendas parlamentares, entre outras).
O sistema semipresidencialista também alia mecanismos do parlamentarismo, com funções típicas legislativas, como a formulação de leis e o controle do governo, o qual se responsabiliza diante do Parlamento (art. 49, alínea 1º). Responsabilização essa que pode culminar em eventual “moção de censura” (art. 49, alínea 2º), para destituir o governo quando o Legislativo não aprova a política seguida pelo governo, ou em question de confiance (alínea 3º), i.e., quando a medida de responsabilização tem iniciativa governamental[9].
Em razão disso, embora o presidente tenha o poder discricionário (e não arbitrário) de nomear o primeiro-ministro, este, por costume constitucional, é escolhido pelo partido da maioria eleita na Assembleia Nacional. Se assim não fosse, o governo sofreria instabilidade diante da resistência parlamentar. A Constituição de 1958 funciona, portanto, sob uma diarquia. Quando o presidente e o primeiro-Ministro são oriundos do mesmo partido, fala-se em “primazia presidencial”. Quando ocupam partidos de polos políticos opostos, o termo usado é “coabitação”.
A figura do primeiro-ministro é fundamental para evitar crises políticas institucionais em face da representatividade democrática do presidente. Isso porque é mais ágil substituir o primeiro-ministro, que não foi diretamente eleito, e montar um novo governo com apoio da maioria parlamentar, do que realizar um procedimento de impeachment de um presidente eleito por sufrágio universal direto.
Ao se valer da prerrogativa do artigo 12, o presidente da República promove a responsabilidade política do governo pelo seu déficit democrático e, assim, devolve à Assembleia Nacional e ao povo a escolha mais atualizada de sua maioria. Em termos formais, antes de se valer da medida, o presidente deve consultar o primeiro-ministro e os presidentes das Assembleias, mas a consulta não vincula a sua decisão. O presidente tem plena liberdade para se valer desse poder[10]. A decisão também não é submetida a nenhum controle jurisdicional, nem do Conselho Constitucional, nem do Conselho de Estado.
Do ponto de vista político, dissolver a Assembleia e convocar novas eleições é um estratagema para produzir uma espécie de segundo turno das eleições europeias para o âmbito nacional. Com mais dois anos e meio de mandato, dirigir um país com uma oposição reforçada pode acirrar a crise de representatividade e, portanto, impactar o resultado das próximas eleições para a Presidência, o que resvalaria no enfraquecimento do candidato do partido Renaissance (provavelmente o até então primeiro-ministro e também jovem Gabriel Attal, de 34 anos).
Essa jogada política aposta num fator institucional histórico. O presidente confia que as regras do jogo se repetirão. Explica-se. O absenteísmo já levou, em algumas oportunidades, o FN/RN para o segundo turno das eleições nacionais franceses, o que descambou, como desfecho, em resultados mais favoráveis para os partidos tradicionais ou mais ao centro.
Em 2002, Jean Marie Le Pen (líder da Frente Nacional) foi para o segundo turno, com 16,86% dos votos, em face do então presidente à reeleição Jacques Chirac, que angariou 19,88% dos votos válidos no primeiro turno. Um choque. No segundo turno, Jacques Chirac se elegeu com mais de 82% dos votos, explicada pela união dos partidos políticos concorrentes e pela diminuição da abstenção de 28,40%, no primeiro turno, para 20,29%, e pouquíssimo votos brancos ou nulo (5,39%). Um brinde para essa legitimação renovada, apesar da crise de representatividade do seu primeiro mandato. Depois disso, tornou-se um dos presidentes mais queridos dos franceses.
Em 2017, Marine Le Pen alcançou 21,30% dos votos no primeiro turno, contra 24% para o Emmanuel Macron, que encabeçava um partido novo no cenário bipartidário tradicional francês, A República em Marcha (com o slogan “nem de direita, nem de esquerda”). No segundo turno, o atual presidente atingiu 66,10% dos votos válidos.
Embora as taxas de abstenção tenham sido altas no primeiro e segundo turno (22,23 e 25,44%, respectivamente), o segundo turno permite que um eleitorado disperso una seus votos em favor de um mesmo candidato. O que preocupa, é que os votos brancos ou nulos aumentaram de 2,57%, no primeiro turno, para 11,52%.
Em 2022, os resultados foram semelhantes. 27,84% para o Emmanuel Macron e 23,15% para Marine Le Pen no primeiro turno. Uma vitória um pouco mais tímida, mas bem maior para o Emmanuel Macron, com 58,54% dos votos válidos, mas uma abstenção ainda mais alta de 28,01% e poucos votos em branco (6,35%). A insatisfação é generalizada e não pode ser ignorada.
Ao dissolver a Assembleia Nacional, portanto, o presidente espera que os efeitos históricos do segundo turno em eleições presidenciais se repita no cenário legislativo nacional. Com a esperança de uma maioria no Parlamento renovada. Idealmente, contudo, a filosofia política da dissolução num regime semipresidencialista corresponde ao papel de árbitro do presidente da República para apaziguar crise de governabilidade com o Parlamento.
Na eventualidade do RN levar a maioria, o presidente se verá politicamente constrangido a, no mínimo, nomear o líder do partido, provavelmente Jordan Bardella, em “coabitação” no Poder Executivo.
A última vez que uma coabitação ocorreu (a terceira na Quinta República) coincide com a última vez em que a Assembleia Nacional foi dissolvida. Em 1997, Jacques Chirac, para a surpresa de todos, dissolveu a Assembleia Nacional[11], porque acreditava que as grandes reformas que planejava demandavam uma maioria parlamentar reforçada. Ele esperava que o seu partido obtivesse mais cadeiras.
Mas as novas eleições levaram a uma inesperada maioria do Partido Socialista na Assembleia, à época, liderada pelo Lionel Jospin, que ocupou a função de primeiro-ministro até 2002. Um fracasso em termos de estratégia política, mas uma coabitação que teve um saldo positivo para o diálogo e as instituições francesas.
A medida, portanto, é arriscada. Muito arriscada. Muitos criticam a decisão imprevista do presidente, talvez um pouco irrefletida. A França está a um mês de sediar os Jogos Olímpicos e as eleições ocorrerão no início do período das férias. Será que há preocupação suficiente dos franceses com o futuro político para deixarem o seu cotidiano de lado e irem às urnas? A aposta está feita.
Uma lição que se pode tirar desses acontecimentos recentes, principalmente num cenário de ascensão de partidos extremistas, é que as instituições e a confiança nas instituições desempenham um papel fundamental no desenvolvimento político dos países.
As eleições são um mecanismo inflexível para um Estado de Direito e funcionam como um termômetro da confiança que os cidadãos depositam nos seus dirigentes. Submeter, novamente, a escolha dos rumos políticos ao voto é uma premissa básica essencial de uma democracia liberal e é preciso criar incentivos para conscientizar (os candidatos e os eleitores) no sentido de diminuir os efeitos avassaladores de uma oposição minoritária fortemente concentrada e organizada num só partido. Naturalmente, é uma decisão que não deve sair da esfera política, nem ser protagonizada pelo Judiciário.
[1] Ver, por exemplo: https://www.publicsenat.fr/actualites/politique/sondage-en-leger-recul-bardella-reste-largement-en-tete-a-32-des-intentions-de-vote-un-point-separe-hayer-et-glucksmann.
[2] Entre 1984 e 2009, o partido já galgava entre 5 e 10% das votações. Em 2014 e 2019, o percentual subiu para cerca de 25%.
[3] Esse percentual varia entre 40 e 60%. Ver gráfico no artigo: https://www.lemonde.fr/les-decodeurs/article/2024/06/10/europeennes-2024-l-abstention-en-recul-a-son-plus-bas-niveau-sur-ce-scrutin-depuis-vingt-ans_6238446_4355770.html#:~:text=La%20participation%20est%20en%20l%C3%A9g%C3%A8re,2014%2C%20qui%20avaient%20peu%20mobilis%C3%A9.
[4] No discurso: “J’ai décidé de vous redonner le choix de notre avenir parlementaire par le vote. Je dissous donc ce soir l’Assemblée nationale.”… “choisir d’écrire l’histoire plutôt que de la subir”.
[5] NORTH, Douglass. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University. Press, 1990.
[6] Article 12 (Modifié par Loi constitutionnelle n°95-880 du 4 août 1995 – art. 3). “Le Président de la République peut, après consultation du Premier ministre et des Présidents des Assemblées, prononcer la dissolution de l’Assemblée nationale.
Les élections générales ont lieu vingt jours au moins et quarante jours au plus après la dissolution.
L’Assemblée nationale se réunit de plein droit le deuxième jeudi qui suit son élection. Si cette réunion a lieu en dehors de la période prévue pour la session ordinaire, une session est ouverte de droit pour une durée de quinze jours.
Il ne peut être procédé à une nouvelle dissolution dans l’année qui suit ces élections.”
[7] O semipresidencialismo já foi defendido pelo atual Presidente so Supremo Tribunal Federal, como reforma institucional mais adequada para a resolução de crises. BARROSO, Luís Roberto. A reforma política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil. Revista de Direito do Estado, n. 3, p. 287-360, jul./set. 2006.
[8] Durante a Terceira () e Quarta República, a França tinha tradição parlamentarista, o que causa uma grande instabilidade ministerial no governo do Poder Executivo. O governo mudava, em média, a cada seis meses, o que causou um parlamentarismo desequilibrado em favor do Poder Legislativo. A Quina República (outubro de 1958) tem por objetivo dar mais forças ao Poder Executivo, sob a liderança de Charles de Gaulle, muito popular à época.
[9] Em suma, a “questão de confiança” é utilizada por um governo quando deseja fazer aprovar um projeto de lei que considere importante, mas que enfrenta uma recusa ou uma indecisão da maioria parlamentar. O governo pode, então, levantar a questão de confiança sobre este texto, o que equivale a colocar sua responsabilidade em jogo. Em termos objetivos, é um ultimato à maioria parlamentar: ou ela vota o projeto de lei apresentado e o governo permanece no poder ou a maioria rejeita o texto e o governo renuncia.
[10] Há alguns limites circunstanciais ao poder: o direito de dissolver a Assembleia não pode ser exercido quando o Presidente do Senado assegura a interinidade da função presidencial em aplicação do artigo 7 da Constituição; não pode ser exercido quando o Presidente da República exerce os poderes excepcionais que lhe são reconhecidos pelo artigo 16 da Constituição (ver artigo 16, parágrafo 4); finalmente, o Presidente da República não pode exercer novamente seu direito de dissolver a Assembleia antes do decurso de um prazo de um ano (contado a partir da data das eleições) da última dissolução.
[11] Ao total, a França passou por cinco dissoluções assemblear. As duas primeiras foram realizadas pelo General Charles de Gaulle, em 12 de outubro de 1962, como instrumento para arbitrar conflitos entre executivo e legislativo; em 1968, a pedido do Georges Pompidou; pelo Presidente François Mitterand, em 1981 e em 1988.
SORAYA NOUIRA Y MAURITY – Pesquisadora. Doutoranda e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Mestre em Direito Público e em Direito Público Internacional pela Université Jean Moulin, Lyon III (França)
FELIPE DE MELO FONTE – Professor de Direito Constitucional na FGV Direito. Doutor e mestre pela UERJ. L.L.M. pela Havard Law School. Procurador do Estado do Rio de Janeiro