A aplicação do princípio da preservação da empresa em sede de recuperação judicial e o recente posicionamento do STJ no julgamento do Recurso Especial nº 1.991.103/MT
Por Bárbara Torres Brandão
O presente artigo tem como objetivo analisar a lógica jurídica a ser adotada quando da incidência de princípios em sede de recuperação judicial, especialmente o Princípio de Preservação da Empresa. Busca-se verificar como e em que medida deve-se aplicar a técnica de sopesamento ou de ponderação quando referido princípio colide com outros previstos em nosso ordenamento, causando ônus demasiado a uma das partes.
As severas consequências econômicas da pandemia de COVID-19, aliadas a diversos fatores como mudanças políticas e aumento do preço dos combustíveis, geraram o aumento do número de pedidos de recuperação judicial. Desta forma, o tema em comento mostra-se relevante na medida em que o Princípio da Preservação da Empresa, positivado no caput do artigo 47 da Lei 11.101/05 (Lei de Recuperação e Falência ou “LRF”) é amplamente utilizado para fundamentar os pedidos de empresas que buscam auxílio junto ao Poder Judiciário.
Além da sua utilização por empresas em crise, referido princípio também é utilizado como fundamento para diversas decisões judiciais que, muitas vezes em clara afronta a outros princípios também positivados em nosso ordenamento jurídico, impõem prejuízo desproporcional a credores extraconcursais.
Para que se possa tratar sobre a ponderação entre os princípios, é necessário tratar brevemente sobre a forma de constituição do ordenamento jurídico, o qual é classificado por Norberto Bobbio como um conjunto unitário, sistemático (porque coerente) e completo. Contudo, segundo o autor, para que tal ordenamento seja considerado um sistema deve existir ordem, entendida pelo doutrinador como a situação em que as normas e princípios são coerentes entre si.
Veja-se, portanto, que tem de existir coerência e ordem na aplicação de normas e princípios. Contudo, em não raras vezes, e principalmente em se tratando de recuperação judicial, tem-se que a aplicação de um princípio inevitavelmente levará ao detrimento de outro, desaguando na necessidade de aplicação das técnicas de ponderação.
Sobre o assunto, Gilmar Ferreira Mendes assevera que “o conflito entre princípios é resolvido na análise do caso concreto, fazendo-se uma ponderação dos princípios, verificando-se o peso, a importância de cada princípio (…)”. No mesmo sentido ensina Guilherme Peña de Moraes, ao sustentar que “o juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a solução do problema, que não haja outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e que seja proporcional em sentido estrito”.
Assim, tem-se que o ônus imposto a uma das partes não pode ser desproporcional ao benefício da outra, sob pena de se desvirtuar a lógica do sistema jurídico e, ao fim, trazer soluções injustas aos casos submetidos ao crivo judicial.
Assim, apesar de o Princípio da Preservação da Empresa ser um dos pilares da Lei nº 11.101/05, este não é absoluto e não pode ser prestigiado em detrimento dos demais princípios, da letra de lei e das orientações dos Tribunais Superiores, pois tal ato iria de encontro ao próprio Direito e ao Princípio da Proporcionalidade e da Razoabilidade.
Nesse sentido, importa ressaltar que o legislador, além de preocupar-se com a preservação da empresa no caput do art. 47 da LRF, observou a situação particular dos credores fiduciários e prestigiou o princípio da segurança jurídica contratual, como se infere da mera leitura do artigo 49, §3º, da Lei 11.101/05.
Contudo, a aplicação indiscriminada do Princípio da Preservação da Empresa acaba por prejudicar em demasia o credor detentor de garantia fiduciária, que muitas vezes, em razão de suposta essencialidade do bem dado em garantia, se vê impedido de executar a dívida por vias próprias e, do mesmo modo, é impedido de executar as garantias contratuais.
Ao impor que o credor extraconcursal não persiga o débito, seja judicial ou administrativamente, as decisões judiciais privilegiam demasiadamente o Princípio da Preservação da Empresa em detrimento aos Princípios da Segurança Jurídica e da Proporcionalidade e Razoabilidade. Ademais, por muitas vezes ignoram o contrato realizado entre as partes e a impossibilidade de que a recuperação judicial de uma determinada empresa afete o patrimônio de terceiros.
Em verdade, tais decisões trazem insegurança aos credores e ao mercado financeiro como um todo, além de alterar a posição assegurada ao credor fiduciário por força da LRF. Caso fosse possível alterar o pactuado entre as partes a todo momento e por tempo indefinido, com fundamento em supostas dificuldades financeiras, não existiria segurança jurídica suficiente para concessão de crédito a outras empresas, o que acabaria por prejudicar toda a economia nacional.
Ao analisar a questão e visando proteger a aplicação da norma infraconstitucional, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp nº 1.991.103/MT, entendeu que o juízo da recuperação judicial não é universal e, portanto, não detém competência para “deliberar sobre toda e qualquer constrição judicial efetivada no âmbito das execuções de crédito extraconcursal, a pretexto de sua essencialidade ao desenvolvimento de sua atividade”.
Ainda sobre o tema, o STJ expressamente reconheceu o privilégio legal conferido aos credores extraconcursais e asseverou que a proibição indeterminada de prosseguimento de execução destes créditos, principalmente após esgotado o stay period, configura “benefício desmedido à recuperanda e aos credores sujeitos à recuperação judicial”.
Por todo o exposto, percebe-se um primeiro aceno à pacificação da matéria sobre a forma de aplicação do Princípio de Preservação da Empresa, sem que haja demasiado prejuízo ao credor e desrespeito a outros princípios que regem o tema, dentre os quais cita-se os Princípios da Proporcionalidade e da Segurança Jurídica.
BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Norberto. A teoria do ordenamento jurídico. In: O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Editora Ícone, 1995.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional – 13. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional. – 10. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
STJ, DJe 13 abr. 2023, REsp 1.991.103/MT, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE.