O PAPEL DOS AGENTES DE MERCADO NA DE EFETIVAÇÃO DA TUTELA DOS DADOS PESSOAIS POR MEIO DA ADOÇÃO DE BOAS PRÁTICAS E GOVERNANÇA
Por Joelane Rodrigues Carvalho
1. INTRODUÇÃO
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) representa um grande marco para o ordenamento jurídico brasileiro, não só pela intensa movimentação que gerou nas instituições públicas e no mundo corporativo em direção a um debate sobre adoção de medidas concretas e com efeitos reais para a sociedade, mas também por alçar o Brasil a uma posição de destaque no cenário internacional em matéria de proteção de dados.
Em que pese muito se diga sobre a normativa brasileira de proteção de dados ser de alguma maneira uma versão enxuta do GDPR (General Data Protection Regulation da União Europeia), é inegável o seu mérito em relação aos avanços na efetivação de direitos fundamentais. A LGPD colocou em evidência outros diplomas normativos1 que tratavam de forma tangencial a proteção de dados e a privacidade ao conectá-los, em alguma medida, em um verdadeiro sistema de proteção. Ademais, a LGPD também foi capaz de gerar um debate significativo que culminou na efetivação da proteção de dados como direito fundamental positivado pela emenda constitucional n° 115 de 2022.2
Para o mundo corporativo a Lei trouxe uma série de desafios em razão da necessidade de se adequar às suas disposições. Contudo, muito além de uma obrigação legal a ser respeitada, a LGPD também propiciou um cenário de oportunidades de negócio para empresas dispostas a investir em boas práticas e governança visando proteger os dados sob sua guarda, com a possibilidade de aumentar a competitividade no mercado, a credibilidade perante o consumidor e órgãos de controle. Nesse sentido, boas práticas e governança não só têm potencial de tornar as empresas mais preparadas para enfrentar as ameaças que o mundo digital impõe como também de promover desenvolvimento econômico.
Este artigo pretende explorar o tema sobre boas práticas e governança investigando o papel dos agentes de mercado no processo de efetivação da tutela de dados. O ponto de partida é uma análise dos aspectos gerais dos arts. 50 e 51 da LGPD, que integram o Capítulo VII, sobre Segurança e Boas Práticas.
2. BOAS PRÁTICAS E GOVERNANÇA NA LGPD
Conforme dispõe o art. 50 da LGPD, os controladores e operadores, no âmbito de suas competências, individualmente ou por meio de associações, poderão formular regras de boas práticas e de governança que estabeleçam as condições de organização, o regime de funcionamento, os procedimentos, incluindo reclamações e petições de titulares, as normas de segurança, os padrões técnicos, as obrigações específicas para os diversos envolvidos no tratamento, as ações educativas, os mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos e outros aspectos relacionados ao tratamento de dados pessoais.
Um primeiro olhar sobre o art. 50 nos permite concluir que o legislador brasileiro optou por um modelo regulatório que prestigia a participação dos agentes econômicos,3 ao possibilitar aos próprios regulados, os agentes de tratamentos, o poder de formular regras de boas práticas e de governança. Isso resulta na maior autonomia dos agentes de tratamento para elaboração de normas mais alinhadas às realidades do mercado, especialmente quando falamos de empresas que integram setores tecnológicos movidos a dados, que mudam constantemente, tornando mais difícil para o agente estatal a sua regulação. Aliás, nesse sentido, Isabela Santos Rosal destaca que o modelo de autorregulação adotado pela LGPD, acaba sendo um mecanismo importante, muito em razão de que há nesses setores uma dificuldade em se atualizar as regulações aplicáveis.4
Em geral, as especificidades de qualquer setor demandam um cuidado direcionado quando a questão for proteção de dados. Aliás, é nesse sentido a redação do § 1º do art. 50 que prescreve que ao estabelecer regras de boas práticas, o controlador e o operador deverão levar em consideração, em relação ao tratamento e aos dados, a natureza, o escopo, a finalidade e a probabilidade e a gravidade dos riscos e dos benefícios decorrentes de tratamento de dados do titular.
Um bom exemplo é o “Código de Boas Práticas: Proteção de Dados para Prestadores Privados de Serviços em Saúde” de iniciativa da Confederação Nacional da Saúde.5 Esse código orienta quanto às condutas a serem praticadas pelos hospitais e laboratórios privados, com o objetivo de permitir o correto uso dos dados dos pacientes. Como se sabe, o setor da saúde tem características peculiares, seja pela natureza dos dados pessoais tratados (de saúde, de menores, e com potencial para perfilamento), pelos agentes de tratamento, seja por possuir regulações específicas, o que exige, no que tange à proteção de dados, uma orientação mais setorial.
Na mesma direção é Código de Boas Práticas de Proteção de Dados no Setor de Telecomunicações6, publicado recentemente pela Conexis Brasil Digital, que por meio da adoção de diretrizes para o tratamento de dados demonstra importante iniciativa de autorregulação do setor para a promoção de maior transparência aos titulares de dados pessoais. Destaca-se o estabelecimento de restrições às ligações de telemarketing (por horários, dias, e em observância ao direito de oposição, por exemplo).
Um segundo olhar sobre o caput do art. 50, por sua vez, nos permite perceber que embora a LGPD não ofereça um guia específico para elaboração de regras produzidas pelo setor regulado, o referido artigo apresenta um conjunto de elementos essenciais que devem ser observados, com destaque para (i) normas de segurança (ii) ações educativas e (iii) mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos.
Em um mundo em que a digitalização dos dados se tornou a regra, normas de segurança, sobretudo aquelas voltadas para a cybersegurança, são essenciais para oferecer um nível adequado de proteção, tanto para os dados pessoais quanto para informações de valor estratégico relacionadas ao negócio. Isso é importante, sobretudo, em um cenário pendente de regulação pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), mas que pode se beneficiar de estudos e iniciativas internacionais como os Padrões ISSO/ABNT e NIST.
Em relação às ações educativas, conforme destaca Frazão, Carvalho e Milanez, são fundamentais para a conscientização dentro da organização, fortalecendo a cultura organizacional dentro da empresa. 7 Os mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos, por sua vez, se constituem de ferramentas poderosas na medida que possibilitam o emprego de mecanismos de controle da efetividade das medidas de segurança adotadas e ajudam a fornecer respostas adequadas aos incidentes de seguranças.
Adiante, dialogando diretamente com o princípios da segurança (inciso VII) e da prevenção (inciso VIII) dispostos no art. 6º, o §2º do art. 50 traz alguns parâmetros mínimos que devem ser observador na implementação de um programa de governança em privacidade que deve pelo menos:
a) demonstrar o comprometimento do controlador em adotar processos e políticas internas que assegurem o cumprimento, de forma abrangente, de normas e boas práticas relativas à proteção de dados pessoais;
b) ser aplicável a todo o conjunto de dados pessoais que estejam sob seu controle, independentemente do modo como se realizou sua coleta;
c) ser adaptado à estrutura, à escala e ao volume de suas operações, bem como à sensibilidade dos dados tratados;
d) estabelecer políticas e salvaguardas adequadas com base em processo de avaliação sistemática de impactos e riscos à privacidade;
e) ter o objetivo de estabelecer relação de confiança com o titular, por meio de atuação transparente e que assegure mecanismos de participação do titular;
f) ser integrado a sua estrutura geral de governança e estabeleça e aplique mecanismos de supervisão internos e externos;
g) contar com planos de resposta a incidentes e remediação; e
h) ser atualizado constantemente com base em informações obtidas a partir de monitoramento contínuo e avaliações periódicas;
Apesar da abertura para que cada setor promova normas gerais de proteção de dados, a ANPD, como antecipado, terá um papel essencial nesse processo tendo em vista que o §3º define que as regras de boas práticas e de governança poderão ser reconhecidas e divulgadas pela autoridade nacional. O tema está na agenda regulatória da Autoridade para o biênio 23-24.
Por fim, o art. 51 estabelece que a ANPD estimulará a adoção de padrões técnicos que facilitem o controle pelos titulares dos seus dados pessoais. Esse artigo merece destaque em razão de sua estreita conexão com um dos fundamentos da LGPD consubstanciados no art. 2, a autodeterminação informativa, que espelha um direito geral de personalidade voltado a garantir ao cidadão o direito de controlar a amplitude da divulgação ou utilização de qualquer aspecto relacionado a sua personalidade por meio de seus dados pessoais.8
A partir dos marcos definidos nos arts. 50 e 51, os agentes de mercado tem um contexto propício para serem protagonistas da efetivação da tutela dos dados pessoais. Primeiro porque também poderão ajudar a moldar o cenário regulatório. Segundo porque, ao implementarem boas práticas e mecanismos de governança, os agentes e mercado tem o poder de promover efetivamente aos titulares de dados uma plataforma de acesso a direitos de bases principiológicas, qual sejam todos aqueles elencados no seu art. 6º: finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, qualidade dos dados, transparências, segurança, prevenção, não discriminação e responsabilização. Nesse segundo ponto, o destaque fica para programas Compliance, referenciado indiretamente em vários outros dispositivos da LGPD (arts 5º, VII, 6º, VIII, X, 37, 38, 44, II, 46, 48, IV etc.) e para os Códigos de Conduta ou Manuais de Boas Práticas, como o já mencionado código de boas práticas da Conexis Brasil Digital.
O ecossistema de princípios da LGPD não se fecha em si mesmo. É importante considerar que incidentes de segurança tem potencial de causar graves consequências para os titulares, resultando na violação de sua intimidade, e sua privacidade sua dignidade. Desse modo, a proteção de dados deve ser vista com suas conexões com outros direitos fundamentais e com princípios constitucionais, em especial a dignidade da pessoa humana (1º, III, CF), a não discriminação (3º, III, CF), a intimidade (5º, X, CF), o sigilo de dados (5º, XII, CF).
3. CONCLUSÃO
Até aqui, foi possível observar que o poder de influência regulatória no mercado gravita muito mais em torno do próprio mercado do que em torno do agente regulador. Daí a afirmação de Camila Jimene, de que o modelo adotado pela LGPD contribui para a conscientização da sociedade acerca da importância da proteção de dados pessoais e ajuda a criar um mercado mais maduro e ético a respeito do tema.9 Para Jimene, isso se dá na medida em que operadores e controladores, entre si, vão exigir mutuamente conformidade com as regras de boas práticas e de governança que estabeleceram de comum acordo.10
Embora a LGPD nem sempre aborde de modo detalhado temas importantes, ao contrário do que faz o GDPR no que toca à segurança e boas práticas, é possível extrair da normativa brasileira as balizas mínimas, seja para a adoção de medidas seja para o estabelecimento de regras setoriais que atendam a necessidade de regular essas medidas de forma ordenada e direcionada.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Emenda Constitucional nº 115. Presidência da República, 10 fev. 2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc115.htm#art1. Acesso em: 25 de jan. 2023.
CNSAUDE. Código de Boas Práticas: Proteção de Dados para Prestadores Privados de Serviços em Saúde. 2021. Disponível em: http://cnsaude.org.br/publicacoes/codigo-de-boas-praticas-protecao-de-dados-para-prestadores-privados-de-servicos-em-saude/#:~:text=A%20Confedera%C3%A7%C3%A3o%20Nacional%20de%20Sa%C3%BAde,Prote%C3%A7%C3%A3o%20de%20Dados%20(LGPD). Acesso em: 25 de jan. 2023.
CONEXIS BRASIL DIGITAL. Código de Boas Práticas de Proteção de Dados no Setor de Telecomunicações. 2022. Disponível em: https://conexis.org.br/setor-de-telecomunicacao-publica-codigo-de-boas-praticas-para-a-protecao-de-dados/. Acesso em: 25 de jan. 2023.
DONEDA, Danilo. Panorama histórico da proteção de dados pessoais. In: DONEDA, Danilo (coord.); SARLET, Ingo Wolfgang (coord.); MENDES, Laura Schertel (coord.); RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (coord.) BIONI, Bruno Ricardo (coord.). Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 423.
FRAZÃO, Ana. CARVALHO, Ângelo Prata de. MILANEZ, Giovanna. Curso de proteção de dados pessoais: fundamentos da LGPD. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
JIMENE. Camilla do Vale. Capítulo VII: Da Segurança e das Boas Práticas. p.387. in: LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados comentada [livro eletrônico] / coordenadores Viviane Nóbrega Maldonado e Renato Opice Blum. – 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 398.
ROSAL SANTOS, I. M. As formas de autorregulação na LGPD a partir da regulação responsiva. Journal of Law and Regulation, [S. l.], v. 8, n. 1, p. 149–162, 2022. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rdsr/article/view/37968. Acesso em: 25 jan. 2023.